Cometi o pecado de levar meus filhos a um treino do Corinthians. Assim que deixei o estacionamento, diante da sala de imprensa, fui logo abordado por uma assessora em desespero. Em seu olhar chamuscava a ira pelo meu pecado, ou crime - se saíssemos da linguagem religiosa para a jurídica.
Ela me advertia, histérica, questionando como eu ousei trazer as crianças sem avisar. Ainda mais eu, um jornalista desconhecido deles, que nunca tinha dado as caras no novo CT. Outro pecado: ser desconhecido. Ainda mais neste mundo de certezas absolutas a serem forjadas em todas as tentativas de se impor um padrão de conduta, mesmo que absurdo.
Senti-me como o personagem Viramundo, de O Grande Mentecapto. E como Raskólnikov, protagonista de Crime e Castigo, de Dostoiévski. Ou então como Macunaíma, o "inconveniente" índio brasileiro de Mário de Andrade. Quem sabe não seria eu o gauche de Drummond, ou o incompreendido de Noel Rosa (o mundo me condena e ninguém tem pena...)
Obedeci a severa determinação, sem pestanejar. Deixei os dois, um de cinco e outro de 12 anos, em uma ante-sala, conforme a orientação, sentadinhos. Passou pela minha cabeça até a impressão de que nós seríamos revistados.
Fui eu ao gramado, já que sou jornalista, tento ser escritor e sempre acompanhei futebol. Estava também a trabalho, na busca de um personagem para um texto. Foi quando fui tachado de mentiroso pela moça. "Não me venha com essa, você não está trabalhando".
Tentei dialogar, apresentando todas as credenciais regulamentadas, aí já com a presença de outro profissional, também emburrado, me olhando de cima para baixo. "Eu não sabia, não vinha no Corinthians há algum tempo. Não estava por dentro destas normas, desculpe. Sempre costumei ir a treinos, dentro de minhas atribuições, porque acho importante o jornalista acompanhar o que acontece e não falar sem embasamento."
E fiquei imaginando como ele se dirigiriam a Nelson Rodrigues, incógnito naqueles tempos sem tanta televisão, se ele ousasse assistir um treino algum dia. Ou a Mauro Pinheiro, ou qualquer um que fizesse do futebol a sua profissão e de certa maneira vivesse disso. Mas quanto mais eu falava, pior ficava. "Cadê a sua câmera?", me inquiriu a assessora.
Era a velha máxima policialesca que voltava a prevalecer naquela situação, retratando também um panorama de como está a relação dos clubes com a imprensa, agora com a chamada profissionalização. "Tudo o que você disser poderá ser usado contra você". Me calei.
Então me lembrei de quando visitava o Parque São Jorge, em alegres manhãs de sábado, quando torcedores e sócios acompanhavam tudo em harmonia. Era uma das épocas mais gloriosas do time. Lembrei-me da generosidade do meu tio Miguel, amigo de um diretor, o Leonel Marconi, que não via mal em levar crianças a um treino, sem atrapalhar. Fiquei corintiano por isso. E meu pai muito grato.
Outros tempos, como bem percebi. Naquele sábado, véspera de uma importante partida do Corinthians, o local parecia um campo de prisioneiros da Sibéria. Dois jornalistas apenas, um silêncio triste, acompanhado pela amplidão cinzenta do céu. Os jogadores faziam um rachão sem graça e cheio de marra.
E os assessores assustados, como guardas andando de um lado ao outro, com olhar de aço, provavelmente por se sentirem pressionados pelas exigências descabidas que têm tirado a vida do futebol, em nome de uma ilusão de profissionalização.
Uma profissionalização fria, falsa e engessada, na qual a presença de crianças chega a ser um incômodo que mal pode ser solucionado, justamente por ameaçar com espontaneidade todo aquele frágil castelo de cartas.
É a ação da famosa Mosca Azul, de quem se sente acima do público, sintoma tão presente atualmente em vários setores da sociedade. A imprensa também é uma ameaça neste sentido, apesar de ser ela, muitas vezes sem nenhum critério, quem dissemina toda a fama das "estrelas inatingíveis" do mundo da bola.
Tudo bem que não houve aviso prévio. Errei feio. Confesso no mais escuro confessionário. Um erro brutal, imperdoável, passível até de processo. Mas, pobre de mim, condenado que não recebeu a menor clemência, como tentar ligar para o encarregado para ver como minha imperdoável ação poderia ser contornada. Ou simplesmente receber um pedido de desculpas pelo inconveniente. "Que pena, marque outro dia, fica para uma próxima..."
Não, eu era Raskólnikov. Um grande mentecapto e criminoso. Merecia um castigo dostoiévskiano. Até agora, enquanto escrevo, tremo de culpa por ter levado meus filhos a um treino, com medo de arder no fogo do inferno.
Hoje, assessorias de imprensa acabam muitas vezes confundindo a organização de entrevistas com total bloqueio aos jogadores. Essa distância, que está fazendo os charmosos treinos de sábado se tornarem tristes e vazios, certamente afeta a imagem dos clubes. Isso sim se distancia de um profissionalismo que traria aos patrocinadores bons resultados.
Além disso, estas agremiações se colocam no Olimpo, inoculadas pelo vírus da fama, que as faz esquecer de que estão endividadas até o pescoço, inclusive utilizando dinheiro público. Futebol é mesmo uma paixão que foge da lógica.
Ah, mas se todos os jornalistas trouxessem... e daí? Que se reservasse um espaço para as crianças, sem invasões, e certamente os treinos seriam muito mais coloridos com aquele alarido cheio de vida. Ademais, em relação àquele sábado, fica a pergunta: quais jornalistas? Só havia dois...
Devo lembrar que, apesar de uma assessoria de imprensa também difícil, o São Paulo reserva todos os sábados para que crianças acompanhem os treinamentos, praticamente ao lado do campo. Não é à toa que a torcida são-paulina cresceu demais nos últimos anos.
No Corinthians, um treino só pode ser acompanhado a centenas de metros, com alguns torcedores, convidados e agendados previamente, se aglomerando para receber uma atenção de no máximo dois segundos. Como argumento para ter contato exclusivo com jogadores, o repórter é orientado a marcar a entrevista. Pois tente ligar e agendar e se sentirá como um paciente na fila do SUS.
Estamos vivendo uma ditadura de ideias no futebol e em outros setores. Uma ditadura da fama, do poder dos investidores, que cada vez mais tem produzido em escala grande as frases mal-humoradas, a negação da derrota, a violência. E sufocado a beleza do jogo, levando junto sua real essência.
O lúdico e o ingênuo soam estranhos, enquanto um aspecto criminoso é até visto com tolerância. Certamente fui mais mal visto do que os torcedores de Organizada que invadiram o treino recentemente e chegaram a roubar alguns atletas, além de agredi-los. Para eles, tapete vermelho.
É lógico que também falo em causa própria. Ninguém gosta ou espera não ser bem tratado, mesmo em um ambiente truculento como o do atual futebol. Mas a minha monstruosa gafe serviu para abrir uma Caixa de Pandora que tem prevalecido, inclusive atendendo ao interesse dos clubes: mesquinhez, falta de sensibilidade, falta de educação e muitas vezes falta de transparência.
Minha tristeza maior nem é por conta da decepção dos meninos. Eles souberam lidar melhor do que eu com o ocorrido. Ficaram conversando animadamente lá na ante-sala, enquanto eu vivenciava os terrores da Divina Comédia, de Dante. "Gostei de ficar aqui mais do que lá fora, tava muito vento", disse o menor.
Mas o que me deixou triste foi a mudança sofrida pelo Corinthians, antes um time com uma imagem muito menos sisuda do que a atual. Talvez o CT e o Itaquerão tenham libertado um complexo de inferioridade que atormentava. Mas não é por isso que se deve perder a alegria, o caráter popular, a simplicidade. Fiquei mais triste do que meus filhos por eu ser corintiano e ver estas mudanças para pior.
Gostaria de, como sempre fiz nos meus tempos de menino, defender o Corinthians, me sentir identificado com o lado sofredor e humano que tanto caracterizou outrora este símbolo. Fiquei triste porque, enquanto passava por todo aquele constrangimento, pensava comigo que iria ter de escrever sobre tudo aquilo, tin tin por tin tin.
Teria de escrever. Mesmo que, para isso, precisasse superar o trauma daqueles olhares de gelo, daquelas frases frias e furiosas cravadas em meu íntimo. E passar por cima da minha culpa e da minha própria autoacusação literária.
Preferia me livrar de tudo aquilo, fingir que nada aconteceu, que aqui é Curintia, que estava tudo bem. Preferia, enquanto lidava com estes fantasmas, pensar em escrever um título altamente elogioso ao meu time de coração. Mas não pude. Afinal, eu estava trabalhando.
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