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O amigo do meu pai

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Dizer que um cronista não pode falar sobre os seus sonhos é o mesmo que afirmar que, acordados, não podemos nos lembrar do que sonhamos. Escrever, afinal, é sonhar um pouco acordado e esse magma do inconsciente desabrocha em nossa imaginação como um rio de lembranças, percepções e esperanças.

Tenho sonhado muito com meu filho, com minha esposa, com minha mãe e com meu falecido pai. Num dos sonhos, entrei no metrô, ao lado de minha esposa, e o encontrei, vindo do ceú, meio atordoado com o mundo moderno e com as pessoas emburradas.

Seu olhar era tão inocente, que o ninei, convidando-o novamente a repartir essa dimensão, por alguns instantes eternos novamente comigo. E fiquei com ele na minha cabeça, até que uma coincidência aconteceu no dia seguinte.

Encontrei o melhor amigo dele, dos tempos do Hospital do Servidor, com quem eu sempre conversava quando ele era vivo. O parceiro sempre elogiava a excepcional qualidade de meu pai como médico, sua absoluta honestidade e impressionante percepção para detectar com precisão a mínima enfermidade que se escondia em um corpo e ou uma alma.

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Era um cara alguns anos mais jovem, mas com um estilo bem parecido com o do meu pai. Deveria vê-lo como um irmão mais velho. Ele era do tipo quietão, pele bastante branca, olhos claros e, além do bigode característico de ambos, mantinha uma barba castanho meio loira, já embranquecida.

Acima de tudo, sempre mostrou enorme preocupação, principalmente por causa das tramoias no trabalho, que às vezes impediam meu pai de assumir um cargo bem mais alto, minimamente compatível com sua qualidade.

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Também falava com muito carinho sobre as questões emocionais que envolviam meu pai no seu ambiente profissional. "Chame ele para ir a um jogo com você", repetia, quase em tom de apelo.

No início, senti um certo constrangimento ao vê-lo novamente. Mas aos poucos, o encontro foi se repetindo no clube, porque, já com netinha, ele começou a ser árduo frequentador.

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Lembrou-se inclusive da (para ele) minha habilidade demonstrada nos jogos futebol de salão (antes do futsal) nos sábados pela manhã.

Eram tempos em que jogávamos com os companheiros do clube A Hebraica, na quadra do "Jacozão", nas de salão, que depois viraram uma de society, em manhãs regadas a animadas conversas, recheadas às vezes de algumas discussões básicas, sempre que esperávamos pela "próxima".

E batíamos papo com copos de refrigerante de máquina, ao lado da grande árvore na lateral da praça Carmel, onde nos refastelávamos da sombra que ela trazia, ou em frente ao antigo bar do Pedrinho, que ficava ao lado da quadra, e onde hoje é uma brinquedoteca.

Agora, a sequência desses novos encontros despertara em mim um desejo cada vez maior de conversar, de saber as opiniões dele, de me atualizar com suas expectativas.

A passagem de meu pai já estava ficando distante... Já havia anos que eu nunca mais o vira. Eu tinha a impressão de que tudo ocorrera em outra era. O interesse pelo amigo, portanto, foi decorrência de uma projeção do conteúdo das respostas que ele me dava. Como a conversa com um oráculo, o decifrar de enigmas.

Meu pai, sempre sereno em suas opiniões, o que falaria sobre o futebol atual, sobre a queda da Dilma, sobre o Obama que ele não viu direito? Sobre os 7 x 1, sobre os coxinhas, sobre a Lava Jato, sobre o Shimon Peres, sobre tudo, sobre mim, sobre ele neste mundo maluco?

E comecei a perguntar a opinião do amigo sobre os mais variados temas. Ouvia com a atenção de uma criança diante de um velho mestre. E ele ia me respondendo, parecido que era com meu pai, de forma semelhante ao que ele (o pai) poderia falar sobre o nosso presente.

Enquanto me dizia "a seleção hoje está uma vergonha" ou "o Brasil vive uma crise de falta de ética", eu concordava, remetendo-me aos tempos em que meu pai elogiava causas humanistas e superava sua timidez para criticar a ditadura.

E eu ficava avaliando, pelo modo, pelos gestos, pelo olhar que o senhor me passava, se meu pai diria aquilo também. Aquele homem acabou ficando ainda mais relevante, por se tornar uma ponte que me ligava ao passado, um caminho para se comunicar com outros mundos.

Passei a lhe telefonar algumas vezes para saber opiniões médicas e até entrevistá-lo para alguma matéria, devido inclusive à sua competência. E ele, generoso, pareceu compreender. E a querer compartilhar, como meu pai muitas vezes fez comigo.

Foi uma época em que ficávamos até tarde estudando Biologia para no dia seguinte eu ir atrás de ótimas notas. Depois, utilizei o conhecimento paterno em artigos que eu escrevia relacionados à medicina.

Posso dizer que, com o reencontro, fortaleci novamente uma amizade, que ainda continua. Diria que a profundidade de um amigo é saber que ele representa algo muito além dentro de nós. Aí vem a importância de sonharmos acordados. Um amigo não deixa de ser uma manifestação em carne e osso de nossos sonhos, a conviver conosco em nossa realidade.

E o amigo do meu pai sabia disso. Orgulhava-se de seu papel, até. Ele assumiu tal função, porque tínhamos algo em comum, compartilhávamos a experiência de conhecer bem pessoa tão importante para nós.

E mesmo não sendo ele o meu pai, passei a me sentir contente sempre que o encontrava. O amigo do meu pai não era meu pai, eu sabia. Mas era especial. Ele era a presença da ausência. Ele era a saudade do meu pai.

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