A beleza iluminada do Rio de Janeiro está mais solitária
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Os bares da Lapa estão mais vazios à noite. Lapa e a sua fama de efervescente, com arcos duplos de alvenaria, feitos quando o Rio de Janeiro se consolidava na exuberância arquitetônica, para rivalizar com a dádiva da natureza.
A maresia, acariciando as ondas, era o que prevalecia, trazida pelo vento norte, depois de se espalhar como perfume pelos corpos deitados na areia em meio ao glamour, à paquera, à descontração e à contemplação embebidas de horizonte.
E entrava nos poros da periferia sambista, pagodeira, repleta de partido alto. Enfeitiçava a cidade, sensual e misteriosa, com cheiro de mar e de mato, elixir transformador da incerteza da dura vida em diversão.
De um prédio antigo na Siqueira Campos, em Copacabana: conversas em tom alto nos apartamentos se misturavam ao som da música dos anos 80. Da janela, o mistério do tempo se anunciava, silenciado pelo morros verdes e escuros. Na sacada em frente à padaria La Copa, barrigudos sem camisa iam e vinham por suas salas iluminadas, com a TV ligada.
Vozes imaginárias, aos paulistanos que lá estavam, cantavam flashbacks como Father Figure, Tempos Modernos, canções de Barão, Legião e Paralamas, desembocando nas atuais de Eddie Sheran, Coldplay e Nick Minaj. O Rio ficou marcado por esse caráter integrador de gerações.
A linguagem universal da música sempre foi a cara da cidade. Com o poder de fazer qualquer adulto paulista, que por lá pernoitasse, se transportar em devaneio para a adolescência, transferindo as vivências de outrora para aquele cenário. E quem não se encanta e venera o Rio quando escuta Wave, Aquele Abraço ou É Hoje? E a tristeza, nem pode pensar em chegar...
Carlos Drummond falou dos inocentes do Leblon, Vinícius de Moraes cantou a garota e outras. Nas madrugadas de boemia, sentava com Pablo Neruda à beira da General de San Martin. Elizabeth Savalla mostrou Ipanema para o Brasil, em Pai Heroi, contracenando nos encantos da Vieira Souto, linda, leve e solta. Flamengo e Fluminense já encantaram a cidade em jogos de multidões no hoje maltratado Maracanã.
Pessoas saradas, obesas e de todos os estilos caminhavam pelo calçadão com o típico orgulho do carioca. Que muitos achavam presunção. Até as anônimas ganhavam ares de famosas naquele palco que misturava areia, suor, vida. Sol e sal. Era como se todos fossem um pouco artistas da Globo, para os quais o Rio virou a Meca, a partir dos anos 70.
Templo de sonhos em sintonia com as marés. Uma legião de ciclistas, pedestres, turistas e locais desfilava na "passarela" da Francisco Otaviano, até a vista do Arpoador. A interação entre humano e natureza era o puro retrato de dois irmãos.
O Rio sempre foi mágico ao impor à realidade a dança com a ficção. Escancarando uma verdade sensual a flutuar com a brisa. Provocando sorrisos, olhares, estado de graça, desejo de busca, entre os flamboyants e as palmeiras, a esperarem, ao som dos passarinhos, o mineiro Fernando Sabino se inspirar antes de seus textos.
Revigorado pelas estrelas, ele costumava depois ir tocar sua bateria no Marina, nas noites de nostalgia e jazz.
Mas Rio Babilônia e o Rubem Braga falaram da ganância e da concupiscência seduzidas pelo mar, que provocam a sensação de infinita onipotência. Diante da exuberância estonteante, embriagados do Leblon foram se afogando no magma que brotou dos morros empobrecidos.
Um magma apimentado pela violência de alguns. Uma minoria em fúria — já não tão minoria —, dentro da miséria da maioria. Jovens mergulhados em um oceano de indiferença, para tempos depois emergirem ressentidos para o asfalto, surgindo sorrateiramente pelas esquinas. Ou escancaradamente andando sem camisa e de chinelo, em busca dos relógios ou celulares, enquanto tiros pipocam e acuam a população nos morros. Eles roubam diante da formosura implacável daquela vista traiçoeira como uma sereia.
Soldados agora percorrem as ruas da cidade, misturando-se a turistas, moradores, garis, gente simples com salários atrasados, trabalhadores que ainda buscam fazer sua parte pelo País.
Em meio a eles, os militares olham de longe os protestos por causa de serviços paralisados ou contra a violência. Hotéis - incrível!- já têm vagas, carros também conseguem estacionar nas ruas próximas à orla. As pessoas caminham desconfiadas, olhando tensas para a linda paisagem.
Quando o velho Rio, cartão postal da alegria, vai voltar a esticar algumas horinhas até a madrugada? À noite, um vazio de quase ninguém está deixando sua beleza iluminada mais triste. As luzes vão se apagando nos apartamentos. E as pessoas se fechando em seus mundos. Já não contemplam como antes. A lua, esparramando seu brilho como um véu de noiva no mar, tem se sentido abandonada. É impossível ser feliz sozinha.
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