"Desenrola, bate e joga de ladinho", "Então viaja de avião. Mó princesa, mó pressão. Só no vapo, vapo do malvadão", "Rebola no pique Anitta. Escuta a batida e do nada ela vira dançarina".
Provavelmente você já ouviu alguns desses refrões e se bobear sabe até a dancinha de algumas dessas três músicas, que estão entre as mais tocadas no Spotify em 2022 e também entre as mais usadas em vídeos do TikTok no mesmo ano.
O sucesso de faixas como Malvadão 3 e Dançarina, respectivamente de Xamã e Pedro Sampaio, mostra como os hits chiclete são parte importante da produção musical brasileira atual.
Nos últimos anos, essa área sofreu mudanças significativas, causadas principalmente pela força cada vez maior das redes sociais e do ambiente digital. Com isso, o tempo de duração das canções passou a ser menor e é possível notar a predileção do público por faixas com refrões simples, repetitivos e que tenham coreografia simples ou desafio para publicar na internet.
A música virou um produto do universo digital, e os rankings de mais tocadas em plataformas de áudio se tornaram um importante indicativo do sucesso de um artista. Inseridos nesse cenário, cantores começaram a relatar uma pressão cada vez maior do mercado fonográfico para emplacar hits virais.
Luísa Sonza já trabalhou dentro dessa lógica e emplacou diversas músicas de sucesso, mas frisa que hoje a preocupação é outra. “Nossa indústria está um pouco adoecida em relação a esse desespero momentâneo. Em 2023, estou a fim de não me render tanto a isso. Sempre trabalhei muito com as plataformas e com a indústria. Não acho que tem que ser 8 ou 80. Gosto da indústria, mas um artista não pode ser refém disso e se desesperar pensando que tem que lançar tantas músicas e estar em tais paradas”, diz a cantora.
Para o compositor e produtor musical Thiago Gimenes, as composições contemporâneas acompanham o hiperfluxo das redes sociais. "Assim como a internet força a gente a receber um monte de informações, a música precisa acompanhar isso de alguma maneira. Acredito que a perpetuação dessas músicas vai ser muito baixa. Se você vai a uma festa ou a um show, estão lá músicas de 50 anos que atravessaram gerações. Como há muitas composições atuais atreladas a situações de agora, que não falam sobre as relações humanas, sobre as situações cotidianas, a durabilidade é menor", analisa.
Por mais que a internet tenha trazido uma série de vantagens para cantores e bandas, como a facilidade para alcançar novos públicos, o compositor enxerga alguns impactos negativos no mercado musical. E diz que esse fluxo prejudica a qualidade de muitas das faixas lançadas atualmente, que acabam ficando similares umas às outras.
“Existe uma preocupação em fazer música para entretenimento. É mais fácil que o público ouça algo que já pareça familiar e que não precise pensar demais. Acho ruim porque vejo a música nesse lugar da educação e da formação mental. Também vejo a música no lugar do entretenimento, mas está desmedido. Nessa correria pelo viral, acabam priorizando o entretenimento e esquecendo a nossa função enquanto artistas, de formadores de caráter, de opinião”, diz.
Na visão de Thiago Gimenes, as músicas pensadas unicamente para se tornarem hits do momento não vão se perpetuar nas próximas décadas. Os singles virais têm mostrado vida curta, tanto na internet quanto fora dela. Em pouco tempo, o público já quer uma nova dancinha, e uma canção toma o lugar da outra como a queridinha do internauta.
Essa efemeridade aumenta a pressão sobre os artistas, que sentem a necessidade de ter uma produção constante, como é o caso de Rebecca. “Existe uma pressão do público de querer a dancinha para o TikTok, é como se fosse uma obrigação. As músicas são muito descartáveis. Até por conta das dancinhas, ela não dura muito, dura uma semana. É difícil para nós que vivemos da música ter que lançar música toda hora. É muito investimento. Todo mundo com quem converso sente essa pressão”, diz a intérprete de AEIOU e Cai de Boca.
O crítico musical e jurado do Canta Comigo Marcelo de Assis explica que, por conta da força das redes sociais, é preciso menos trabalho para divulgar uma música e torná-la um sucesso. “A indústria musical está muito mais ativa para buscar novidades. A música que faz sucesso tem um tempo de vida, e a percepção de hoje é que ele é muito mais curto.”
O mercado musical se adaptou a essa nova lógica de consumo. Para Thiago Gimenes, foi a partir de meados de 2013 que essas mudanças foram sentidas com mais força pela indústria fonográfica, principalmente por causa do crescimento do YouTube no Brasil. “Quando você consegue fazer um hit viralizar e uma gravadora vem atrás de você, isso muda um pouco a perspectiva do mercado e todo mundo fica nessa ânsia de ter um hit viral. Hoje, quando você pensa em uma canção viral, já tem que pensar em uma letra que vai ajudar a ter coreografia e a fazer um vídeo", diz o compositor.
“Hoje em dia, é raro uma gravadora se interessar por alguém que não tenha visualizações, que não tenha feito um caminho solo de marketing pessoal. Poucas gravadoras ainda investem em um artista desconhecido que não tenha pelo menos um público definido pela internet”, completa ele.
O R7 entrou em contato com a Warner Music Brasil, a Sony Music Brasil e a Universal Music Brasil, mas nenhuma das três gravadoras aceitou participar da reportagem ao saber do tema da matéria.
Outra mudança perceptível é na forma como os lançamentos são feitos. Na época em que as mídias físicas, como os CDs, eram a principal forma de consumo de música, os artistas procuravam trabalhar com álbuns para disponibilizar o trabalho. Hoje, é mais barato e demora bem menos lançar singles soltos. Tanto é que cantores de diversos gêneros musicais apostam nesse formato e muitos nem têm planos para produzir um disco completo, ou então precisam estar consolidados no mercado para lançar o álbum de estreia.
O crítico Marcelo de Assis afirma que no início da carreira é até mais vantajoso trabalhar com singles soltos. “Para o artista, o mais importante quando ele está em começo de carreira não é um álbum, ele precisa do primeiro hit. Essa pressão pode ser até maior hoje, mas ela nunca deixou de existir na música”, argumenta.
Mas ficar por muito tempo focado em emplacar um grande hit não é uma estratégia inteligente. “Sempre teve isso, tanto na música brasileira quanto na internacional. Há aqueles artistas chamados de one hit wonder, cantores de uma música só. Eles aparecem todos os anos, mas não podem ser exemplo de uma carreira a ser trabalhada”, diz.
“Com essa preocupação com singles, não dá nem para contar uma história real, traçar uma imagem artística. Quantos cantores a gente já não viu sumir? Quantos já não foram hit do verão e depois a gente não ouve nem falar? Existe uma aposta financeira para que tudo isso aconteça, e o artista fica em segundo plano”, endossa Thiago Gimenes.
Vanessa da Mata lançou o primeiro álbum há 19 anos e teve grandes sucessos ao longo de uma década de carreira, como Boa Sorte, Ai, Ai, Ai... e outros. A cantora conta que sofreu com a pressão por hits no passado e que as gravadoras costumavam pedir a ela que tentasse repetir as fórmulas das canções em novas faixas.
“Se você cai nessa brincadeira, você vira um cantor de um hit só, o que acaba com a criatividade. Não tem que cair nessa, não. Se começa a ficar assim, automaticamente vai ficar igual, e um artista dois anos mais novo que você vai ser a voz da vez”, aconselha a artista, que hoje prefere trabalhar de maneira independente, sem estar ligada a uma gravadora.
Assim como Vanessa da Mata procura fugir da pressão do mercado, há outros artistas que Thiago Gimenes considera “resistência” no mercado musical. Para o produtor, estão nessa categoria grandes nomes da MPB, como Marisa Monte e Caetano Veloso, que têm um público fiel e seguem com shows lotados e disputados, e também novos nomes da música independente.
Mateus Carrilho começou a carreira musical em 2010, quando era um dos integrantes da Banda Uó. Com o conjunto musical, ele teve contrato com uma gravadora, rodou o país com shows e teve músicas em trilhas sonoras de novela. Hoje, segue o caminho como um artista independente e acredita ser possível fazer sucesso no Brasil “com boas músicas e muita qualidade”.
“Fiquei muito preocupado em viralizar e em entrar para um trend viral, só que vi que isso não estava me fazendo bem. Isso aconteceu uma vez de maneira positiva. Lancei com a Tainá Costa a canção Toma e deu supercerto, foi maravilhosa. Só que depois tentei repetir essa fórmula e não rolou. Também vi que isso não estava me traduzindo. Acho que o artista não pode só ficar preso nesse lugar, porque esse pode ser um caminho muito ruim”, reflete o cantor.
Assim como Mateus Carrilho, há outros artistas no Brasil com a mesma preocupação, mesmo entre os que fazem músicas mais populares e comerciais. Gustavo Mioto, atualmente com três músicas entre as 50 mais tocadas do Spotify no Brasil, diz fugir dessa pressão e se dedicar também a músicas e projetos autorais.
“A pressão vem dos bastidores, da parte burocrática que cuida das carreiras. Dentro da minha carreira, sempre deixei muito claro que não trabalho para a moda. Tanto que algumas das minhas músicas de trabalho não têm dança, não têm brincadeira. Trabalho pensando na música”, diz o sertanejo.
Essa pressão em cima dos artistas não é uma característica única do mercado brasileiro. No exterior, diversos artistas já comentaram a pressão para emplacar virais.
Em maio do ano passado, a cantora Halsey deixou a Capitol Records após ter revelado que a gravadora estava bloqueando o lançamento de uma música. "Estou nessa indústria há oito anos. Vendi mais de 165 milhões de discos, e minha gravadora está dizendo que não posso lançar uma música a não ser que eles possam criar um viral no TikTok", disse a cantora na ocasião. Nomes como Charli XCX e Florence Welch, da banda Florence and the Machine, revelaram que eram obrigadas pelas gravadoras a publicar vídeos no TikTok.
Porém, também há grandes artistas que se recusam a ceder à pressão em torno das redes sociais. O produtor Thiago Gimenes cita Beyoncé como um exemplo. Um dos maiores nomes da música mundial, a cantora pop ainda não lançou um clipe para o novo álbum, o premiado Renaissance, por exemplo.
“É interessante ver que a Beyoncé está fazendo a sonoridade que já definiu, que é o que ela quer perpetuar, com a história dela e com a bandeira que defende. Ela traz isso sem muita preocupação se vai agradar”, analisa Gimenes.
Outro grande nome que fugiu da discussão em torno das redes sociais foi Adele. Ao lançar o álbum 30, em 2021, a cantora disse em entrevista ao radialista Zane Lowe que não estava preocupada com os virais. “Se todo mundo está fazendo música para o TikTok, então quem está fazendo música para minha geração?”
Isso não impediu que Adele e Beyoncé se tornassem sensações nas redes sociais. Músicas das artistas viralizaram nas redes, com remixes ou mesmo as versões originais, o que também ajudou na divulgação dos discos.
O que só mostra como as redes sociais fazem parte da sociedade contemporânea e também impactam na maneira de fazer música.
No Brasil, Joelma já tem quase 30 anos de estrada. Conhecida por bater cabelo e dançar de salto alto, a cantora entrou na onda de coreografias mais simples para as redes sociais ao lançar Dançando e Beijando, mas acrescenta que não deseja trabalhar apenas em função do que faz sucesso no digital.
“As coisas mudaram. Antigamente a gente só divulgava em televisão e rádio. Hoje, tem internet e esses aplicativos. A gente tem que estar aberto para entrar nisso, tanto que fiz uma coreografia bem fácil para o TikTok. Não vou pela pressão, sou muito de sentir e me entregar. Se me pressionarem, não faço mesmo”, comenta.
Joelma estourou no Brasil antes das redes sociais e ainda hoje lota shows pelo país, inclusive com forte presença do público jovem.
O perigo de um artista que só trabalha focado em criar hits é não conseguir lotar apresentações, como já aconteceu com Zé Felipe. Filho de Leonardo, o cantor teve um show cancelado em agosto do ano passado pela falta de ingressos vendidos, mesmo que praticamente todas as músicas do artista emplaquem nas plataformas digitais e alcancem o topo das paradas.
Segundo Thiago Gimenes, o que aconteceu com Zé Felipe é um efeito da falta de identificação do público com o cantor. "Às vezes lançar um single atrapalha porque a pessoa só conhece uma música sua. Como você vai para um show em que conhece só uma música ou duas?"
“Se o artista só pensa em trabalhar para fazer música de festa, além de ser um processo desgastante, porque a concorrência é grande, ele acaba perdendo o foco na carreira”, completa Marcelo de Assis.
Gimenes acredita que trabalhar com álbuns é importante para respeitar a individualidade e a sonoridade dos cantores. "Hoje, com essa preocupação com singles, não dá nem para contar uma história real, traçar uma imagem. A trajetória desses artistas fica em função da indústria", comenta.
Para cantores em início de carreira, pode parecer mais intimidador tentar subverter essa lógica de mercado de alguma maneira. Mesmo sendo sucesso em todo o Brasil, Luísa Sonza conta que só sentiu segurança de questionar essa maneira de fazer música após ter sido indicada ao Grammy Latino com Doce 22, álbum de estreia lançado em 2021.
“Quero fazer parte dessa indústria, não quero sair do mainstream, mas também não quero fomentar algo tão maluco que já feriu muito a minha cabeça. A gente tem que fazer arte, fazer o que a gente gosta, com mais tranquilidade e sem tanta loucura para hitar. Estou muito mais tranquila e segura com a minha arte”, diz a voz de Cachorrinhas.
Por mais que as redes sociais tenham esses impactos negativos, Marcelo de Assis acha que elas criaram um ambiente mais democrático para os músicos, que podem divulgar sua arte de maneira mais independente.
"As plataformas digitais são determinantes para o sucesso do artista, aliadas claramente ao marketing deles", diz.
Para isso, uma nova técnica utilizada por cantores e gravadoras é usar o TikTok como um laboratório. Trechos de singles são disponibilizados previamente na rede social para testar a recepção dos internautas.
"Isso viabiliza a obra. Quando uma música é distribuída ali, é possível ter uma amostra de como ela está sendo aceita pelos usuários. Se faz sucesso no TikTok, isso vai reverberar em plataformas como o Spotify, o que é importantíssimo. Existe uma relação muito próxima entre as duas plataformas. O TikTok virou um laboratório para a música pop", explica Assis.
Luan Pereira conta atualmente com duas músicas entre as 50 mais ouvidas do Spotify. Para o expoente do agronejo, ter uma faixa entre as mais tocadas não é uma novidade. O cantor, que tem parcerias com nomes do sertanejo e do funk, conta usar as redes sociais como uma forma de teste.
“É questão de analisar o mercado, o que está virando e o que não está virando. Ou você arrisca um negócio sem saber se vai dar certo ou não ou pega o bonde andando. O que está virando é música com dancinha? Então vamos para cima.”
A banda indie Jovem Dionísio é autora de Acorda Pedrinho, um dos maiores hits de 2022, e conseguiu se tornar conhecida em todo o país graças ao sucesso da faixa nas redes sociais.
“Um cantor não pode colocar uma música nas plataformas digitais, sentar em uma cadeira e esperar ela bombar. É necessária a divulgação nas redes para mostrar que a música é boa”, diz Marcelo de Assis.
A sertaneja Luiza Martins, que começou a carreira na dupla com Maurílio, reconhece a pressão por hits e músicas chiclete. Ela diz tentar fugir dessa lógica, mas sabe da necessidade de ter as redes sociais como aliadas.
“Não quero viralizar, quero dar sequência ao trabalho que já era feito, mostrar algo novo. Mas qualquer artista que fala que não existe essa pressão está mentindo. Os números são legais, mas mais importante que isso é entender o seu público e mirar nele”, diz.
Até quem tem um trabalho mais alternativo e independente precisa estar ciente dessa lógica. Como Mateus Carrilho está.
"Todo artista hoje tem que se usar como influenciador. Querer se distanciar disso é uma coisa negativa. Você tem que saber quem você é enquanto artista e usar essas redes a seu favor, não querer ficar submisso a esses virais e essas trends", conclui o cantor.
Reportagem: Pedro Garcia
Edição: Vivian Masutti
Coordenação de Arte: Matheus Vigliar
Gerente de Produção Audiovisual: Douglas Tadeu
Arte: Sabrina Cessarovice
Coordenação de Vídeo e Produção de Conteúdo: Danilo Barboza
Produção de Conteúdo Audiovisual: Julia de Caroli e Matheus Mendes
Edição e Finalização: Edimar Sabatine