O filme jogável que você esperava
Divulgação/2K GamesBasta uma rápida olhada no menu para entender as principais intenções de The Quarry. O game, desenvolvido pela Supermassive Games, claramente deseja adentrar o pantanoso mundo dos jogos cinematográficos. Há ali uma opção chamada "Modo Filme", que permite basicamente assistir as cenas com história do jogo com escolhas feitas por você previamente — é possível até determinar se todos os personagens morrem ou sobrevivem. Revelar essa opção de cara não apenas denuncia certos objetivos do game, como ainda dá ao jogador a possibilidade de drenar boa parte encanto do jogo, ao ter acesso a detalhes da trama antes de jogá-las.
Obviamente, jogar The Quarry é bastante diferente de assistir um filme. O jogo conta uma história manjada, mas muito bem desenvolvida, que brinca com os próprios clichês. Jovens monitores de um acampamento de crianças de Nova York se preparam para viver uma noite de despedida com festa, mas logo tudo se torna bastante sombrio, com a presença de possíveis bruxas, fantasmas, segredos familiares e maldições ancestrais.
Mesmo com todas as suas escolhas e alguns plot twists interessantes, a narrativa nunca foge às convenções do gênero e se mantém em um lugar relativamente seguro. É uma aposta arriscada também: quem não gosta de tais produções não terá muito para se apegar no jogo, que depende quase inteiramente das possíveis relações afetivas e estéticas do jogador com filmes de terror dos anos 80 e 90.
Como muitas produções de horror recente, o jogo até utiliza uma estética visual clássica e retrô — referências a fitas VHS, monitores de tubo e citações explícitas de obras como Evil Dead e A Bruxa de Blair são comuns. Há um misto de autoconsciência — quase obrigatória desde que Wes Craven dirigiu Pânico —, humor e terror genuíno, sem a necessidade de sustos baratos e repetitivos.
Apesar de evocar e emular clássicos do gênero, obter tal equilíbrio não é algo simples e a Supermassive deixa claro que sabe como fazer. Eu não joguei Until Dawn, o game anterior do estúdio mais se aproxima de tais moldes, mas esse me parece um projeto de evolução, de uma empresa consciente de quais cordas puxar.
Mas o jogo ainda não é narrativamente perfeito. Certos momentos da história parecem inchados e se apoiam demais em referências ao passado. Há capítulos e discussões de relacionamento que parecem estar lá apenas para estabelecer certo número de horas de jogo. Há situações dúbias também, em que você se perguntará por que tal personagem está andando sozinho numa floresta escura, e a resposta talvez seja unicamente para imitar os protagonistas pouco espertos de filmes clássicos.
As mecânicas de The Quarry são relativamente simples de entender e ficarão claras com poucos minutos de jogo. O game alterna cenas narrativas com momentos de exploração, em que a câmera fica semifixa — geralmente em busca de algum efeito cinematográfico, o que nos lembra os primórdios da franquia Resident Evil, ou até mesmo Metal Gear Solid.
Vez ou outra, há alguns quick time events, em que o jogador deve apertar um botão específico para completar uma ação durante uma cena — uma forma do game garantir que o jogador está atento durante os momentos tensos. Há também itens que só ficam visíveis por alguns segundos, ou serão perdidos. A alternância entre tais momentos estabelece o ritmo do jogo, inicialmente lento e dedicado a nos apresentar os personagens, mas logo depois francamente acelerado.
As barrigas na trama se somam a outro defeito muito claro: explorar esse jogo é uma atividade lenta e que exige paciência. Os personagens se arrastam, mesmo quando assombrados por criaturas misteriosas. A lerdeza e rigidez dos personagens quando controlados chegam a sugar a vontade de explorar os ambientes do jogo, nos empurrando para o caminho mais rápido. Como consequência benéfica indireta da morosidade dos protagonistas, podemos enxergar todos os cenários com um pouco mais de detalhes e evitar tomar decisões apressadas — ainda assim, um botão dedicado para correr não seria uma adição ruim.
Mas, para ser claro, The Quarry não será lembrado pelos defeitos, e sim pelos acertos.
O pesadelo para qualquer produtor que pretende desenvolver um game cinematográfico é como manter o jogador interessado em uma jogatina de 10 horas que poderia ser uma série de TV de 5 horas. A principal dificuldade é como dosar as cenas de filmes com os momentos de escolhas. Até que ponto o jogador pode intervir na trama? Desenvolvedores celebrados como cinematográficos, a exemplo de Hideo Kojima e sua longa e hermética série Metal Gear Solid, criam obras monolíticas, onde o jogador deve viver uma história da perspectiva de um personagem específico.
Falhar significa tentar de novo — vencer, lhe dá o prêmio de assistir cenas de até 40 minutos. A porção cinematográfica de tais games é a falta de medo de tirar o controle das mãos do jogador para apresentar seu conteúdo narrativo profundo, cujas mecânicas binárias ainda não alcançavam.
Este não é o interesse da Supermassive Games. A ideia não é fazer um game cinematográfico, mas um filme interativo, que tem muito mais relação com livros-jogo famosos nos anos 80 e 90 do que com games do primeiro PlayStation. Os produtores da empresa resolvem isso não apenas com referências a outras produções, mas também decidindo cuidadosamente o que mostrar ao jogador.
Escolhas são muito importantes no jogo
Divulgação/2K GamesO menu lida com esse dilema muito bem. Há um espaço com informações dos diferentes locais do acampamento (uma ilha, a casa dos donos do terreno, cabanas perto da piscina, um chalé), uma seção com o humor de cada um dos nove protagonistas e, o mais importante, uma lista dos caminhos escolhidos pelo jogador. O game ressalta que é sobre escolhas, e sinaliza quando cada decisão importante é feita durante a narrativa, deixando-as armazenadas em uma sessão que emula capas coloridas de VHS de filmes de terror.
É uma abordagem mais polida que a adotada pelos games cinematográficos da Quantic Dream, dirigidos por David Cage. O problema com Cage é que ele queria ser cineasta, e dá a impressão de que falhou em realizar esse sonho. Por isso, seus jogos parecem lembretes pessoais da frustração do diretor, e querem nos mostrar o quão inteligente e habilidoso ele é como contador de histórias. Cage parece ter um medo atroz de que os jogadores estraguem as histórias dele, e por isso infesta os jogos com simbolismos e correlações baratas para convencer qualquer de que está diante de algo único — geralmente, com o efeito oposto.
A Supermassive não sofre do mesmo mal e vai por um caminho bem cimentado pela Telltale Games, outra desenvolvedora que se especializou em jogos do tipo (e faliu em 2018, antes de ser comprada), famosa pela série The Walking Dead. A ideia aqui é um tanto invertida de um game comum: o jogador deve explorar os limites da história e brincar com as próprias decisões. Ainda assim, nunca deve-se esquecer estar diante de um filme.
Por isso, há uma tensão constante entre game e jogador. Por exemplo: terminar com todos os protagonistas vivos é uma grande conquista num game, mas péssimo em um filme. Os protagonistas não são você, mas personagens a ser movimentados no tabuleiro narrativo, vê-los morrer não é exatamente um atestado de falha, mas um caminho possível dentro da história. Enquanto joguei The Quarry, todas essas questões perfuraram minhas horas de jogatina.
Há ainda uma quebra de quarta parede, quando você encontra uma vidente que pede para que encontre cartas de tarô espalhadas pelo jogo. Ela se dirige diretamente ao jogador, e não a um dos protagonistas do game. Encontrar as tais cartas permite certos vislumbres de futuros possíveis, de acordo com suas escolhas. É uma forma do jogo explorar contingências nos caminhos do jogo e lembrar do produto que é.
Um filme também deve ter um bom elenco, e The Quarry faz isso bem. Os jovens protagonistas são relativamente desconhecidos, mas bastante carismáticos, principalmente pelo bom trabalho de dublagem e captura de movimentos. Nomes como Halston Sage, Brenda Song e Zach Tinker são um tanto nebulosos para o grande público, mas cumprem perfeitamente o papel de jovens em perigo com uma ameaça aterrorizante ao redor.
O game conta com um elenco de estrelas
Divulgação/2K GamesÉ nos atores mais velhos que o jogo brilha. Há um propósito bastante claro quando produtores reúnem nomes como Ted Raimi (irmão de Sam Raimi, e ator de Evil Dead), David Arquette (que participou de todos os filmes da franquia Pânico) e Grace Zabriskie (Twin Peaks e Coração Selvagem) em um jogo. Todos eles estão ótimos em seus papéis e têm em comum a predileção por produções de horror, alternando humor e momentos horripilantes. Eles são ajudados pela técnica quase impecável do jogo, com sua excelente captura de movimentos, direção de cenas e gráficos de primeira.
A dublagem em português também deve ser mencionada e elogiada. Não é perfeita, mas nunca quebra o clima. Jogar o game com todos falando nosso idioma é uma experiência que se compara a rever A Hora do Pesadelo com dublagem — desconcertante apenas o suficiente para nunca esquecermos que um filme está diante de nós.
Obviamente, há outros problemas em The Quarry também. Para funcionar como filme, as quebras nas transições entre cenas e momentos em que o jogador estás no controle devem ser mínimas e nem sempre o jogo consegue isso. Joguei em um PlayStation 4, e vez ou outra havia claros engasgos nesse fluxo de imagens. Às vezes, o áudio também perdeu a sincronia ou falas foram repetidas, o que causa certa estranheza.
Esses problemas podem parecer mínimos e perfeitamente normais, mas deve-se entender que o game depende disso para funcionar, e qualquer imperfeição do tipo (como as texturas do cabelo de uma vilã não carregarem, deixando-a totalmente careca) nos expulsa da experiência do jogo. É de se esperar que os produtores ajustem a maioria dos problemas em atualizações futuras, mas um aviso do tipo deve ser feito.
Um momento de exploração durante o jogo
Divulgação/2K GamesNo entanto, o grande defeito de The Quarry é, provavelmente, o mesmo de outros games cinematográficos: a falta de um fator replay. Jogar uma vez já me parece plenamente satisfatório: a trama foi revelada, o destino dos personagens foi traçado e já conhecemos as consequências da maioria das decisões. O que resta é apenas matar certas curiosidades sobre caminhos alternativos, e para isso o game disponibiliza um modo de escolha de capítulo, liberado assim que o game é completado pela primeira vez.
Ajuda o fato do gameplay ser bastante fácil, e exigir mais atenção do que habilidade. A ideia combina com a identidade cinematográfica do jogo, mas dispersa o interesse após alcançarmos o fim. Ainda que o game propagandeie que possui 186 finais, assistir um deles é perceber que, em sua maior parte, trata-se unicamente de revelar quem morreu e ficou vivo, coisa que qualquer jogador já sabe, uma vez que participou ativamente do enredo.
Sim, até nesses aspectos The Quarry não esconde o que realmente é. O jogo representa um amadurecimento filmes jogáveis. Certamente é envolvente e coeso, apesar das ligeiras falhas no ritmo dos roteiros e a lentidão da exploração. É um produto cultural de primeira que deve ser experimentado — ainda que olhe para o passado, suas conquistas provavelmente serão muito copiadas no futuro.
The Quarry
Desenvolvedora: Supermassive Games
Publisher: 2K Games
Lançamento: 10/06/2022 (PC, PS4, PS5, Xbox One, Xbox Series X/S)