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A quadra que conversava com os alunos

Por Eugenio Goussinsky

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Ela parecia um organismo à parte na escola. Mas não era. Aquela quadra, lá no fundo, era um local onde pairavam os desejos de herói das crianças que corriam por sua superfície. Nos recreios, era um cenário de sonhos.

Os meninos costumavam tomar conta do espaço. Corriam em alarido dentro de times que chegavam a ter trinta jogadores cada. E, da confusão repentina, de repente surgia a bola e ela era chutada por um predestinado que comemorava a sorte de ser o contemplado com um gol.

As meninas só podiam usá-la mais tranquilamente na Educação Física delas, que afastava aquele avassalador trovejar de passos dos garotos em direção ao seu templo sagrado.

Era quando, regidas pela morá (professora) Rose, as minhas escolhidas desfilavam, para mim, seus ares de musas inspiradoras, com saques por baixo e olhares de soslaio.

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O local era coberto, na parte de trás do Colégio Bialik. Ficava logo depois de um pequeno pátio, meio escuro, entre a cantina e o pátio principal.

Ligava, como uma entrada de serviço, o setor do ginásio ao do pré-primário, por uma escada de ferro que mudava de direção.

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Por suas paredes de cimento, pintadas de branco, ressoava um pouco da alma de cada um. Peculiar, a quadra tinha também a missão de ser uma pausa da tensão das aulas e ao mesmo tempo um espelho do que acontecia lá.

Quando eu tinha acabado de entrar na escola, ela me ajudou a conhecer meus novos amigos, apresentando de certa maneira o futebol para mim. Me interessei, fui ver o jogo do Corinthians contra o Fluminense em 1976, com o saudoso Capita em campo, e me apaixonei para sempre.

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Enquanto corria por sua superfície de concreto, toda pintada de um verde gasto, via as marca das áreas, do meio-campo e das laterais como se fossem riscadas a giz. E sua superfície verde escura, gasta, era como uma lousa de ensinamento para mim.

Nela, eram reveladas minhas esperanças em driblar. E minhas inseguranças ao errar, competindo com meus amigos nesta fase de aprendizado. Lá, por mais de 10 anos, conheci muitas lições sobre a identidade humana, inclusive a minha. Tal oráculo apontava momentos de mágoa, de graça, de altruísmo de um passe ou do egoísmo da reclamação.

Era preciso ser forte para vencer naquela quadra: e vencer, no caso, era conhecer a própria essência, independentemente dos gols sofridos ou das discussões da infância.

E o esporte foi se tornando tão importante que, a cada dia, a aula de Educação Física era a mais esperada. E quando o professor Abelardo, um uruguaio de olhar sério e cabelos enrolados, que educava com poucas palavras, e depois do professor Ricardo, o típico boa gente, diziam que iria ter futebol, então...

E quando me sentia um pouco isolado e já cansado de ter de seguir regras e aguentar a rotina imposta desde cedo, que somos obrigados a seguir, ousava entrar sozinho na quadra. Geralmente, todos já tinham ido embora. 

Sentava em um canto e só ficava escutando aquele silêncio de fundo de mar. Também andava pelas linhas, observava cada ângulo adormecido, lembrando-me de como há instantes o agito preenchia aquelas entranhas agora vazias.

Escutava apenas os sons lá de fora. Buzinadas de carro, brecadas, um grito de uma criança, o ritmo pulsante do dia chegavam um tanto abafados. Protegidos. Até a luz do sol podia ser vista por frestas. Que também deixavam passar as gotas de chuva. E a cada gesto meu, ela respondia. Pisava mais forte, o som aumentava.

Se eu sussurrava, ouvia sua resposta imediata ecoar, generosa, alcançando e ampliando minha voz. Refletindo com transparência a minha, a nossa, realidade solitária.

Se gritasse, ela acolhia o berro e ia diminuindo os ecos até eles cessarem, contidos como círculos em um lago ou um soluçar que se rende ao alívio. Ela era bondosa e implacável. Quando adulto, a revi de passagem e fiquei impressionado com suas dimensões, tão menores do que imaginava. E mais uma vez ela me apontou uma verdade: a infância passara.

No fundo, em nossas conversas daqueles tempos sem palavras, ela filtrava tudo para mim e dizia: "Olha, a vida lá fora continua, só lhe resta entrar no jogo e fazer a sua parte. Simbolizo o palco dos homens. Quando precisar, estarei aqui, pode se sentar e descansar no meu silêncio." A quadra da escola já não existe mais, no concreto. Mas o seu conselho, ecoa em mim até hoje.

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