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Décio e Fabinho com a bola nos pés 

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Na escola, um dos momentos mais reconfortantes era o recreio. Ouvir o sinal e correr pelas escadas amplas do antigo prédio do Colégio Bialik simbolizava um alívio da pressão de estudar, do peso da responsabilidade.

Bem que a professora Marlene um dia comentou com minha mãe, quando me viu aproveitar o último restinho do jogo na quadra coberta, lá nos fundos: "Nessa idade, um minuto vale ouro".

Sempre encarei desta maneira. A espera ansiosa pelo fim da aula longa se transformava em um universo de oportunidades no instante do minuto livre, que me ensinava ainda mais do que algumas orientações dos professores. E me levava a crescer um tantinho por meio dos meus sonhos.

Naqueles recreios libertos de um olhar adulto, me deparava com minhas observações infantis. Nelas, escondendo minha timidez em piadinhas com os colegas, sempre tive um certo medo do Décio e do Fabinho. Além da questão deles serem mais velhos, jogavam muito bem futebol. E quando digo jogavam bem, não é a frase vulgar dita a qualquer menino mais habilidoso. Eles para mim pareciam abençoados por uma força maior, que os movimentava em malabarismos dentro das quatro linhas.

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O Fabinho era um ano mais velho do que eu. E o Décio, dois. Intimidava-me o ar um tanto convencido que eles passavam, confundindo-o com minha própria insegurança de não me dar conta de que eu podia, de alguma maneira, fazer o que eles faziam.

Uma vez, no campinho do jardim do Leco, primo do Décio, dei uns dois cortes nele, me senti um pouco capaz e logo sumi. Ele não. Ironizando adversidades, Décio se impunha com sua canhota mirabolante. Era algo inato. Seus movimentos com a esquerda fluíam e culminavam com um chute certeiro, que só ele sabia dar: seco, seguro, geométrico.

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Sua categoria já era um prolongamento do corpo. Já se misturava ao rosto de menino, um tanto magro e sardento, com cabelos levemente longos. Ele até andava um pouco na ponta dos pés para expressar sua altivez.

O Fabinho, então, era pura habilidade. Jogava como se brincasse consigo mesmo, em um diálogo com sua inspiração. Desenterrava dribles incríveis com uma segurança que nem parecia ser de criança. E dessa conversa rápida, silenciosa, extraía jogadas que emergiam surpreendentes de seu íntimo, em nuances de ilusão de ótica ou truque de magia.

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Ele driblava nossos olhares marcando gols impressionantes pelo clube A Hebraica, com quem jogava também com o Décio e, lá, completava o trio com o ótimo ala Celsinho, hoje coordenador da equipe de futsal em que meu filho joga.

Se dizem que Messi deixa a bola grudada no pé, Fabinho já fazia isso. Piadista e explosivo, se impunha diante dos fixos, como ágil pivô, barganhando com seu corpo robusto, de estatura média, e transformando a cara de menino, com olhinhos escuros, no rosto de um pequeno desbravador.

Os lábios grossos, pele morena e o cabelo curto, com franjas, completavam a imagem que tanto respeito despertava nos adversários. Aquele físico tão único, conhecido em todo o meio do futsal, escondia segredos da bola, fazendo-a atender seus pedidos repentinos sem que precisasse dizer uma palavra.

Passei a infância observando Décio e Fabinho jogarem, nos muros protetores da escola e dentro da muralha que ficavam minhas fragilidades. Vivia sentado na tribuna de honra de minha admiração muda. Que guardava cada lance, para sempre.

Era como se eles atuassem por mim, demonstrassem, com suas personalidades fortes e seus estilos únicos, aquilo que eu gostaria - e até podia - de fazer, mas não fazia. Hoje, como futebolista frustrado, eu me reputo um Paulo Henrique Ganso que não deu certo. Um talentoso que só descobriu o talento quando teve tempo de se lembrar.

Não digo que eu seria como o Décio ou o Fabinho, mas poderia fazer da minha maneira algo tão bom quanto o que eles fizeram com a deles.

Eles também, vai saber o porquê, não se tornaram jogadores. Se não me tornei, aprimorei o meu amor pelo jogo com a ajuda involuntária dos dois. Aquelas jogadas do Décio e do Fabinho carregavam o encanto de uma época.

Craques consagrados, como Zico ou Sócrates, não costumavam virar de letra uma bola para o outro lado da quadra como o Fabinho fez um dia. E nem Rivellino dominava sempre com a técnica e batia todas com tanta arte como o Décio fazia. Éder era fichinha perto dele.

Tal qual na frase de Aldous Huxley, tudo isso me abria as portas da percepção. Ajudou-me a desenvolver minha criatividade, baseada na importância do instante, na plástica de um único toque, no detalhe que compõe a saga de uma partida, de uma vida. Na gota de talento que alimenta o orgulho e perdura pelo infinito.

Assim, sempre me ative ao lance fabuloso que não percebo outros perceberem. Um toque de costas despretensioso, no meio de campo, por cima do corpo, para mim amplia horizontes. Muitos podem até achar que o jogador fez péssima partida, eu não.

Por isso, em cada drible, em cada cruzamento preciso, cada tentativa ousada, minha paixão à flor da pele não admite que falem que o brasileiro já não cria. Cresci com essas vivências incrustadas, admirando o belo, retratado na ação daquelas duas figuras fundamentais da minha infância. Certamente, se mantêm entre as melhores recordações daqueles tempos, cheios de incertezas e temores.

Nossa diferença de idade, inclusive, já não pesa tanto e serve para diluir o medo. Percebi essa cumplicidade quando vi uma foto do Décio, atualmente, dominando uma bola com a coxa. O Facebook também tem coisas boas. No homem já perto dos 50, me veio à mente aquele garoto, que não virou profissional - passou a trabalhar com eles como empresário - com o mesmo zelo pela técnica. Os dois foram para outras áreas porque também tinham outras habilidades.

Se o deslumbramento tomou outros caminhos, estes não foram capazes de apagar tudo aquilo. Aliás, nada é. O mundo gira, as coisas passam, mas o inato nunca deixará de se manifestar, seja em um olhar, seja em uma pelada que rega a saudade, seja simplesmente na recordação diante de uma quadra de futsal.

A parte invejosa do mundo é incapaz de jogar na lama todos os diamantes mais valiosos. Muitos sobram, sempre. Tornei-me um lapidador destes diamantes, não levando tão a sério as críticas amargas a este ou aquele bom jogador; a fúria contra o bom homem que cometeu uma gafe; a surdez diante de um poema profundo ou a cegueira que não vê o brilho fulgurante da intuição.

Tento apenas compreender quando se esquecem do mais valioso da seresta. Na feiúra de uma cidade, a beleza do pôr do sol também emerge de seus arranha-céus. E se o cantor de restaurante cantar com arte e leveza, aplaudo, tentando compensar a sua solidão. Aqueles dois meninos fazem parte desse legado. Sei que os que só acusam ou se calam não tiveram o meu privilégio. Eles não viram Décio e Fabinho.

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