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No ritmo do mar

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Chegava ao apartamento com rastros de mar e areia. Queria alcançar o infinito, olhando para o futuro, na sequência dos instantes. Sentia que um dia superaria todas as inseguranças porque, afinal, o tempo lhe permitia. E enfim se veria livre, alcançando o infinito que estava à sua frente, acenando para o futuro do menino. 

Pele salgada, oceânica. Era hora da limonada feita pelo tio. Antes de entrar no chuveiro. A família toda, em alvoroço, se movimentava no local sem muito espaço, apenas uma sala de médio porte, um quarto, cozinha, banheiro e varanda. Mas para ele era um universo de emoções.

Incertezas, medos, prazer no contato com a natureza, estranheza com o clima de maresia da cidade, distância das questões da escola, vergonha e ao mesmo tempo sensação de acolhimento ao estar lá, passando férias com os parentes. 

As questões eram as imediatas para ele: tomar banho para aliviar-se das marcas da praia, uma dependência das decisões alheias, estando lá meio que automaticamente, simplesmente por ser criança e não ter muita outra opção.

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A cidade de Santos, a cada temporada, era uma esfinge. Havia um ar de decadência que na verdade refletia os seus temores. O jardim da praia, único no mundo, a estátua do homem com um mapa na mão, olhar sério, marcando a mortalidade no olhar de aço, sussurravam palavras melancólicas em seus ouvidos.

Contavam e refletiam um pouco da solidão de ir andando pela calçada quente, do prédio até a praia, como se a paisagem ampla e os horizontes fossem apenas uma ilusão de liberdade. Como se ele percorresse nessa trilha uma caverna cheia de ameaças, morcegos, escuridões que estavam por trás da paisagem iluminada.

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A infância é uma época de impressões, que ficam muitas vezes para sempre. Exacerbadas, não raro tiram o foco do real e se transformam em fantasias distorcidas, como um espelho de parque de diversões que não deixa nos ver como realmente somos. Não, ele não era um nada.

Foi isso que sentiu quando, anos depois, já adulto, veio do Guarujá, de balsa, para a cidade onde passara importantes momentos. Do carro, lá da ponta da praia, viu o mesmo horizonte, plúmbeo, demonstrando várias possibilidades enquanto barcos e navios repousavam no dorso cinza e tranquilo do mar. 

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Viu a mesma ilha que fora, à distância, cenário de sua meninice, que sempre despertou nele curiosidade: como seria viver lá, naquela mata tão isolada e ao mesmo tempo próxima da civilização, em contraste que sempre o atraiu? Qual conversa teria a ilha, chamada de Urubuqueçaba, com o céu, ela, que parecia ter poderes imensos só por estar em ponto tão aberto, há séculos, diante de todas as possibilidades do mundo?

A ilha continuava ali. Parada, enquanto ele percorrera o mundo que parecia ser dela. A tarde caía. Escutava a eterna música Do You Know, de Diana Ross. Aquele timbre suave, profundo, o levou de volta aos anos em que passara lá. Diana Ross, a ilha e ele viraram uma coisa só, viajantes do mundo que sempre aportam em seu porto seguro. 

Quis dizer algo para a esposa, que olhava para outro lado, tentando procurar o prédio onde ela ia passar férias. Também não acordou o filhinho querido, para mostrar a ilha, o horizonte. Seria difícil comunicar o que realmente queria. Homem esculpido na areia, com o olhar cinzento do mar. Ele se tornara uma Ilha de recordações. 

Era esse o futuro daquele tempo? Onde estava o infinito pelo qual tantas vezes esperava que batesse à sua porta com notícias alvissareiras? Sem desviar o olhar do horizonte intuiu, naquela tela de lembranças, as mesmas vivências: a limonada do tio, a pele salgada, as incertezas na praia, a distância da escola, a estátua, os jardins daquela época. Percebeu que muitas vivências sem fim navegam pelo passado. 

Estão vivas em algum lugar e podem acordar de maneira surpreendente, bastando um acorde musical, uma palavra, uma frase: do you know? A gente sonha com o futuro quando criança, mas quer abraçar o passado quando adulto. Um passado, também infinito, que ele teve a certeza de carregar dentro de si. E que o fazia, enfim, se sentir livre.

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