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O colégio Bialik tinha alguém especial

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Meu pai me levava todos os dias para a escola. Íamos de carro, passando por ruas arborizadas, com algumas casas imponentes, ao estilo inglês, outras mais simples, ajardinadas, mas sempre com uma identidade que dava beleza ao trajeto. Era uma preparação bucólica para as aulas.

Ao chegar, lá estava a morá (em hebraico, professora) Rina, a coordenadora. Já andava pela rampa coberta, que ligava a entrada ao pátio, ladeada de um belo mosaico colorido de pedras, com uma imagem dos Macabeus. Ficava por lá para organizar as filas dos alunos no hino. Iniciava a rotina bem antes das 7h10, quando o sinal estridente batia.

Às vezes a rigidez de seu grito agudo, com timbre do leste europeu, ressoava pelo pátio. Eu muitas vezes era o alvo. Sempre com brincadeirinhas para preencher algum temor diante das obrigações de um aluno.

Havia também as broncas durante os ensaios para o seder de Pessach (jantar de Páscoa), lá no salão do Colégio Bialik, embaixo da sede administrativa. O nome Bialik era uma homenagem a um importante poeta judeu do leste europeu no século XIX.

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No dia-a-dia, era intrigante descer aquelas escadas do salão, passar por uma cortina e adentrar naquele local meio escondido, amadeirado, com um amplo palco ao fundo. Muitas vezes, no recreio, jogávamos futebol de meia naquele piso liso de tábuas.

Na parede ao lado da escada de entrada do salão ficava uma portinha que dava para o refeitório. Era possível também entrar pela escada, pelo lado da área administrativa. Naquele refeitório de azulejos brancos, funcionárias como a Ana, de óculos e cabelos ondulados, e a Conça, senhora negra, volumosa e muito simpática, serviam as crianças.

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A garotada, em balbúrdia, sempre aprontava alguma: uma guerra de comida que sujava as paredes, para desespero justificado delas, ou a bagunça nas longas mesas perfiladas.

Nos ensaios de Pessach, a morá Rina separava os grupos. Comandava os preparativos para a cerimônia que contaria com a presença dos pais, em noite especiais. Todos os alunos, em cada nível respectivo de ensino, tinham o direito de participar.

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Permaneciam, entre cochichos e risadinhas, sentados diante de amplas mesas espalhadas pelo salão, com pratinhos preenchidos com ingredientes tipo matzá e copinhos de suco de uva no lugar do vinho. Cada um era incluído. Nem que fosse com uma pequena frase. Ninguém compreendia bem tamanha dedicação.

Muitos até se queixavam do jeito um pouco bravo dela. Sem se darem conta da responsabilidade que ela atribuía a si mesma. Queria passar uma mensagem judaica e educativa para um punhado de alunos ainda em busca de referências, no processo de crescimento.

A passagem que mais a emocionava, e que tinha a ver com seus objetivos renascidos, era quando alguém recitava o poema iniciado com "Bem aventurada seja a chispa, que ardeu e acendeu labaredas"...Todo aquele ritual era algo que ela prezava, um sentido comunitário cuja importância conheceu em seus tempos difíceis da Romênia, onde nasceu.

Outro momento que a tocava eram as aulas de Shirim (músicas), ministradas por seu filho, o dócil moré Felipe, com um acordeão. Durante o coro de crianças cantando composições judaicas, os olhos azuis da morá Rina brilhavam um pouco mais. E contrastavam com seus cabelos lisos e ruivos.

Ela se sentia plena, como se estivesse desfazendo naquele colégio o novelo de seu passado de perseguições e tudo que muitos judeus conhecem em suas famílias.

Ficaria linhas e linhas contando episódios que vivenciei com a morá Rina. O dia em que ela chorou por eu ter brincado, involuntariamente, sobre a peça de teatro que montávamos...O momento em que ela chorou quando cantei em meu Bar-Mitzvá. O resultado seria o mesmo.

Triste ou feliz, séria ou alegre, brava ou calma, o seu rio de sentimentos canalizava sempre para a minha convicção de que ela amava o que fazia e os seus alunos. E sempre que estava comigo deixava claro que, naquele momento, aquele menino rebelde e sensível era para ela o mais importante.

Atuou lá por mais de 30 anos. Como qualquer professor, pouco falava de si. Os alunos, em suas funções naturais, mal queriam saber. Tinham outras preocupações ou afazeres. Ela sabia. E atendia também com métodos intuitivos.

Recebia todos em sua salinha no primeiro andar do prédio principal. Eram como visitas quase familiares. Ouvia sorridente a correria pelas escadas para depois, disfarçando com estilo durão, sair pela porta reclamando do alarido em excesso.

Mesmo quando mudou a diretoria, e ela acabou encostada em um cantinho, o jeito de falar, as passadas firmes pelos corredores, que não escondiam ternura, eram uma marca da escola.

Até que as duas - a morá e depois a escola - se foram. Nem despedida houve. Nenhuma palavra, nenhum adeus. Tudo se diluiu pelos novos desafios, rotina, formatura, faculdade, carreira...distanciamento.

Um dia, porém, eu quis conferir se tinham ido mesmo, passados trinta anos. Eram 7h10 da manhã quando refiz aquele trajeto, pelas casas bonitas, lembrando das conversas com meu pai. Ao chegar, depois de um trânsito bem mais pesado, não havia mais nada daquele tempo lá.

O terreno da escola fora vendido para um empreendimento imobiliário de luxo. Onde ficava o salão, tinha uma piscina. A rampa lateral deu lugar a um canteiro de palmeiras. O mosaico de Macabeus ruiu para a colocação de um muro bege. O refeitório abrigava a garagem.

Mas posso até dizer que, entre o canto dos passarinhos e o barulho da fonte de água da entrada, ouvi aquele sotaque. Olhei com a esperança de ver algo da antiga construção. Uma lâmpada incandescente, um distintivo do velho candelabro (símbolo do colégio), uma cadeira fora de época, uma lousa desbotada ao lado de uma mureta...Ou um fio de cabelo ruivo adormecido na calçada.

Não. Vi apenas alguns degraus de mármore. Eles terminavam em uma ampla e impessoal portaria, vigiada por três seguranças engravatados. Sei lá. Meio frustrado, meio saciado, resolvi acelerar o carro. Como fez o tempo em relação a mim, ao meu pai, à poesia do nome, aos jogos no salão, aos ensaios, ao Bialik.

Só deixei em meu rastro as palavras que escrevo agora. São a canção que fiz para a morá Rina. Além da gratidão, elas são, pelo menos, o meu consolo.

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