Caras e bocas, poses e danças sensuais, roupas curtas e seminudez. Há quem ache absurdo quando fotos e vídeos abusam destes recursos para explorar a mulher — mas e se, no lugar de adultas, as modelos forem meninas? Não seria ainda pior?
A revista Vogue Kids, em sua edição de setembro, publicou um ensaio de moda em que as peças principais deveriam ser os sapatos infantis, mas acabou chamando a atenção por causa da exposição a que submeteu as crianças em suas imagens. Em sua grande maioria de calcinhas à mostra, sob uma atmosfera provocante, as garotas acabaram no centro de uma discussão sobre a erotização infantil, que se espalhou pelas redes sociais e que agora chega aos ouvidos do Ministério Público, que recebeu, nesta quinta-feira (11), dezenas de denúncias contra a revista.
Não é a primeira nem a última vez que a publicidade sexualiza crianças para vender produtos. Nos portfólios de marcas famosas, não faltam exemplos de anúncios em que modelos infantis assumem posturas adultas e sexy, como é o caso, por exemplo, da marca Lilica Ripilica, que veiculou uma propaganda em que uma menina aparece com o rosto coberto por um creme branco, e o slogan sugere “use e lambuze”.
“É um caso patológico e criminoso”, avalia o pediatra carioca Daniel Becker, responsável pelo blog Pediatria Integrada, um dos primeiros a repercutir e comentar o editorial de moda da revista Vogue no Facebook.
— A erotização ali está de forma tão explícita e grosseira que não há como não ficar nauseado. Mal dá para dizer a idade das meninas, tamanho é o invólucro de sensualidade, mas calculo que tenham entre 7 e 9 anos. Todas fazendo coisas eróticas. Uma deitada no deck, que parece alguém que acabou de transar. A outra insinuando tirar a blusa. Bocas e pernas abertas. As crianças estão sendo usadas como objetos de uso sexual e reproduzindo a pior atitude da sociedade com as mulheres, que é fazer das mulheres um objeto.
De acordo com Becker, colocar meninas em situações como esta causam prejuízos imediatos, resultantes da exposição e do julgamento, mas também danos a longo prazo, que aparecerão quando elas atingirem a maturidade afetiva.
O pediatra explica que erotizar as garotas é como "amputar delas sua infância", e pode fazer com que elas, no futuro, substituam o amor por exposição sexual, se preocupando muito mais com suas performances com o parceiro do que com os próprios sentimentos.
— Pode causar deformação da identidade corporal e até anorexia, porque a menina vai crescer tendo que aderir a padrões estéticos. Além disso, pula uma fase importantíssima da infância, quando a criança desvia o olhar da sexualidade e dirige sua libido para o mundo, o conhecimento, o deslumbre, o aprendizado, e as brincadeiras. As garotas são empurradas cinco anos para a frente, e ainda com valores sexistas embutidos.
No caso dos meninos, eles podem até não ser usados como objeto em propagandas na mesma frequência que as meninas, mas, para o pediatra, eles também acabam sofrendo "indiretamente" — ao verem modelos eróticos tão reproduzidos na infância, acabam tirando lições inadequadas deles.
— Eles terão uma relação com o sexo oposto muito limitada. Vão exigir que meninas tenham esse padrão estético, vão ter dificuldade de entrar em relações de afetividade verdadeira, e vão olhar as mulheres de maneira inferior, podendo, inclusive, atuar de maneira violenta.
E obviamente o mundo da moda e da propaganda não são os únicos vilões. Crianças recebem influências dos mais variados meios — é só analisar por alguns minutos a programação da TV, as letras de músicas, as coreografias dos videoclipes.
Um bom exemplo é o vídeo caseiro Eita, Giovana, publicado na rede já há alguns anos, mas que ficou realmente famoso no começo de 2014. Nele, uma menina aparece dançando e, o grande momento, que o levou a ser compartilhado mais de 830 mil vezes, é quando um forno de micro-ondas despenca em cima dela.
No entanto, há algo de mais importante a ser analisado nas imagens. A garota, que aparenta ter no máximo nove anos de idade, ensaia os passos de uma coreografia sensual, ao som de outra menina que filma e canta versos como “empina, rebola, toda delícia, toda gostosa”.
— Na época da personagem Tiazinha (Suzana Alves), cheguei a ver em bailes infantis de Carnaval mães levando suas filhas vestidas de collant, cinta-liga, imitando a dominatrix da televisão. As pessoas perderam a noção da realidade e do razoável, tão enfeitiçadas que estão pelo que o mercado propõe. É preciso olhar para as crianças, e também examinar a conduta dos pais e mães, para ver se eles também não estão completamente aderidos a esses valores.
A psicóloga paulista Claudia Cavallini, que atende adultos e crianças em seu consultório, conta que já se deparou com casos em que os pais sentem orgulho do comportamento sexualizado das filhas, e algumas contam até com autorização dos responsáveis para manter perfis com fotos sensuais em redes sociais.
— O pior dano nesta situação é tirar da criança o direito de ser criança, o direito do brincar, que é onde ela vai poder simbolizar tudo. É na brincadeira que ela vai criar uma representação do seu universo, até chegar o momento em que estará preparada para entrar no mundo sexual. A criança não está preparada para receber um monte de informações precocemente. Ela está entendendo aos poucos o que seu corpo quer dizer.
Tanto para a psicóloga quanto para o pediatra, cabe aos pais regularem não só a exposição dos filhos, mas também o conteúdo a que eles são expostos diariamente. Claudia explica que a ideia não é punir o comportamento sexualizado quando ele aparece, mas, sim, apresentar uma alternativa mais adequada a ele, “trocando” a brincadeira por algo mais saudável.
Daniel Becker acredita que é “inevitável” que meninas e meninos tenham contato com ídolos e modelos erotizados, mas que, com cuidado e orientação, os danos podem ser reduzidos.
— Temos que conversar com nossos filhos sobre isso, criticar quem faz errado, mostrar que há conteúdo manipulativo e ajudar as crianças a se localizar neste bombardeio perverso. Propor outra coisa, expor menos ao vídeo da Beyoncé e levar mais para o parque, pegar uma boneca, ir à praia. A cultura chega de forma sem controle, e cabe aos pais oferecer atividades mais saudáveis.
Outra dica do pediatra aos pais de meninas é que regulem com atenção o uso no dia a dia de roupas com características adultas, além de maquiagem e sapatos de salto.
— Brincar de adulto é uma coisa aceitável, mas pais exibindo filhos e filhas como pequenos adultos, aí não. Não é proibido que meninas usem batom, mas é melhor fazer do batom um jogo, por exemplo espalhando pelo rosto todo. Cara de palhaço, sim, de perua, não. Elas podem até usar batom em uma festinha, ou para identificar a mãe com a filha, mas é preciso que seja algo eventual. Passar sistematicamente batom nos lábios vira comportamento adulto, e isso não é bom.