Um Dia Antes De Completar 57 Anos, A Partida Clandestina
(A incrível história da mulher que nasceu no dia 10 de dezembro e morreu no dia 9 de dezembro)
Se eu fosse eu|Do R7
Um câncer no ovário e a sentença de morte que chega, sem vergonha de avisar. Nos textos, a morte sempre por perto. Clarice Lispector descobriu o câncer no ovário poucos meses antes de morrer. Na entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, da TV Cultura, em fevereiro de 1977, fez um pacto com a morte. Pediu ao jornalista que a entrevista só fosse exibida depois que ela partisse. Dez meses depois, Clarice se foi. E a entrevista exibida em alto estilo, com ar de exclusiva, nunca morreu.
- Mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?
- Bom... (ela respira fundo antes de erguer finalmente os olhos) Agora, eu morri. Vamos ver se renasço de novo. Por enquanto estou morta. Estou falando do meu túmulo.
Clarice flertou tanto com a morte em cartas, nos contos e romances e nas raras entrevistas que concedeu. “Ah como queria morrer”, escreveu em “Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres”. As personagens se equilibravam entre a vida e a morte, numa complexa montanha-russa de emoções. Achava a morte misteriosa e distante. Na entrevista concedida aos jornalistas Affonso Romano de Sant’anna, Marina Colasanti e João Salgueiro, em outubro de 1976, ao MIS – RJ, 14 meses antes da morte dela, Clarice pergunta: “Quando eu morrer, que eu não sei quando é... – Affonso interrompe: “Nem pretende, né?” “Não, não pretendo... Será que tem Coca-Cola e Pepsi Cola ainda? Daqui a não sei quanto tempo...”
A morte: presságio de cartomante. Macabéa morre atropelada em "A Hora da Estrela”, romance eterno, que Clarice não viu brilhar. Não deu tempo. Ela sabia que o tempo e as sensações tinham poder. Dois anos antes de morrer, disse à amiga Olga Borelli: “Vou morrer de um bruto câncer”. Previu e pra Paris partiu. Em junho de 1977, já com os primeiros sinais da doença, viajou com Olga em busca de luz, na cidade-luz. Voltou rápido. Tinha pressa de sofrer. Os ovários de Macabéa secaram. E, curiosamente, os de Clarice também. Dizem que previa os últimos dias. “Uma pessoa sabe quando está morrendo”. Já internada em um hospital público do Rio de Janeiro, Clarice pediu à amiga Rosa Cass que trouxesse uma cerveja preta e comidas típicas judaicas. Escondida de enfermeiros, bebeu a cerveja com gosto de felicidade clandestina. Sempre disse que gostaria de morrer escrevendo: “inclusive eu já morri a morte dos outros”, mas agora morro de embriaguez da vida”.
Como tudo na vida de Clarice é uma epifania, a morte da escritora acontece um dia antes de ela completar 57 anos. Deixou dois filhos, Pedro e Paulo, e uma vasta obra misteriosa, a cada dia sendo descoberta e revisitada. Clarice enfrentou a vida e a morte com palavras de canhão. Uma guerra de sentimentos, que lutavam uns com os outros. Não sabia ser pouco. Nem simples.
No dia 9 de dezembro de 1977, morre Clarice Lispector. Dia 10 de dezembro de 1920, nasce Chaya Pinkhasovna Lispector. Chaya, em hebraico, significa “vida”. A caçula de uma família ucraniana, de olhos vibrantes e enigmáticos e poucas palavras, mas com muitas sensações. A mulher que nasceu para o mundo. A ucraniana mais brasileira do universo, traduzida em 32 idiomas, cujos livros iluminam as bibliotecas e livrarias de 40 países. Como é difícil escrever sobre a morte de Clarice... ela está vivíssima! Sempre à procura de algo. O quê? Nem ela sabia. “Eu vou me seguindo, não sei o que vai dar...”
Clarice dizia: “Se eu tivesse que dar um título à minha vida seria: à procura da própria coisa”.
Pesquisa: “À procura da própria coisa – Uma Biografia de Clarice Lispector”, de Teresa Montero. Editora Rocco.
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