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Papo de Paciente

O dia em que atendi a campainha do acaso

Depois de receber a visita do câncer aos 32 anos, quero te convidar para conhecer minha nova casa, e pedir licença para entrar na sua. Juntos vamos, aos poucos, mudando as coisas de lugar. 

Papo de Paciente|Do R7

Nem sempre a vida obedece a cartilhas. Entre o nascer e o morrer, há muito mais que nossos planos. Há estradas de chão escuras e estreitas, ventos improváveis, e subidas para as quais nossas pernas não estão preparadas. Também existe ar puro e águas brandas em dia de verão, mas nem sempre o grau dos nossos óculos está ajustado para identificar essas paisagens. Temos certa soberba em achar que somos donos da nossa própria agenda, determinamos dia e mês para que um evento aconteça. Mas o calendário nos desajusta e ainda ri do nosso espanto. Às vezes, o que deveria ser o fim veste um traje de recomeço e aperta nossa campainha em uma manhã de segunda-feira sem avisos.

Aos trinta e dois, ouvi esse som, alto e forte. Eu fui pega penteando os cabelos, distraída com o que pensava ser importante. Achei estranho o barulho da campainha assim tão cedo, e preferi voltar à cama. Ela não estava confortável e abraçava pesadelos, mas ao menos era familiar. Cuidado com a amizade dos lugares conhecidos – nem sempre ela é verdadeira!

Ouvi outra vez o som da campainha. Abri um dos olhos e, pela segunda vez, conferi minha agenda. Realmente, aquela manhã estava em branco. Minha casa não estava aberta para hóspedes, minhas contas estavam pagas e quase ninguém sabia meu novo endereço. Abandonei as cobertas e precisei enfrentar o frio fora de época, me levantei e vesti qualquer humor, vencida pela insistência. Abri a porta como quem desfaz as malas após uma viagem de férias, devagar, sem vontade de guardar memórias nas prateleiras para voltar à rotina. Eu não esperava receber essa visita. Não sem ao menos ter sido avisada pela genética. Não de forma precoce.

Sei que não sou a única a ter que abrir a porta para a notícia do câncer. Sei que, além de mim, muita gente também já foi ferida pelo avesso do calendário. Na verdade, cada vez mais adultos jovens têm rasgado suas agendas: os planos rabiscados com a inocência dos que acreditam serem os únicos donos da caneta são massacrados pelo acaso. Esse abalo não é de todo ruim: receber o cumprimento da morte foi meu maior encontro com a vida.


Nesta coluna, pretendo fazer companhia para você, que também atendeu a campainha do imprevisto. Não sei quem foi a sua visita: um câncer ou outra doença grave, uma mudança de rota, um meteoro dos grandes ou uma chuva que parece leve, mas é capaz de encharcar sapatos. Juntos, vamos redesenhar nossos planos, mas agora a lápis. Se for preciso passar a borracha e voltar ao mês de janeiro, tudo bem. Agora sabemos que atender as expectativas do mundo apenas para se enquadrar em porcentagens tem um alto custo: perder-se da própria vida.

Daqui em diante, nos nossos encontros, vamos conhecer as experiências de quem teve o tapete puxado na própria sala de casa, ouvir a ciência e os especialistas. Vamos aprender a olhar com cuidado para quem somos e para nossos hábitos, procurar atalhos e recalcular rotas, se for preciso. É tempo de assumir responsabilidades, questionar a forma como tratamos a vida, reconhecer distrações e deixá-las aonde devem estar: no acostamento da nossa estrada. Nos vemos em breve!

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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