Cinema 80 anos de Martin Scorsese: o poeta do lado sombrio de Nova York

80 anos de Martin Scorsese: o poeta do lado sombrio de Nova York

O diretor celebra oito décadas de vida com uma das mais ecléticas e poderosas filmografias do cinema

  • Cinema | Por Gabriel Solti Zorzetto, da Record TV

Martin Scorsese completa 80 anos nesta quinta-feira (17)

Martin Scorsese completa 80 anos nesta quinta-feira (17)

Reprodução/Instagram

Quando se imagina a cidade de Nova York e sua representação no cinema, instintivamente pensamos em Woody Allen e sua Big Apple irônica, neurótica e romântica, tão bem retratada em clássicos como Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, Hannah e Suas Irmãs e (é claro) Manhattan. Mas se você quiser entender a alma profunda e perturbadora de uma das principais metrópoles do planeta, é Martin Scorsese, que completa 80 anos hoje (17), quem você deve procurar. Isso provavelmente não é uma surpresa, já que ele nasceu e foi criado lá, mas poucos cineastas dedicaram uma parte tão grande de seu trabalho a documentar a capital do mundo.

Onze de suas produções acontecem em Nova York, e esse número sobe ainda mais se incluídos os seriados Boardwalk Empire e Vinyl, nos quais ele atuou como produtor-executivo e diretor esporádico. Os becos sombrios de Caminhos Perigosos são distintos daqueles retratados em Taxi Driver, por exemplo, apesar de estarem separados por apenas alguns quarteirões. E isso é elevado à máxima potência na representação de diferentes eras, como no sofisticado romance A Época da Inocência, no viril e sujo Gangues de New York e na extravagância financeira de O Lobo de Wall Street, cada um com seu retrato particular da grande metrópole americana.

Em entrevista ao jornal The Guardian, o próprio Woody Allen explicou: “Nós dois somos muito diferentes. Marty é um poeta do lado sombrio de Manhattan, e eu tenho visto a cidade de uma forma muito mais romântica. Acho que a diferença é porque Marty teve suas impressões de Manhattan ao crescer no centro da cidade, e eu tirei minhas impressões dos filmes de Hollywood. Suas impressões de Nova York são muito reais, muito corajosas e muito precisas, enquanto as minhas sempre foram fortemente influenciadas por ideias de uma Nova York que pode ou não ter existido”.

Nascido em 17 de novembro de 1942, filho de pais e avós de Palermo que imigraram da Itália para o Queens, Scorsese lançou seu primeiro longa-metragem em 1967, Quem Bate à Minha Porta?, estrelado pelo amigo Harvey Keitel, com quem repetiria a dose em 1973, em Caminhos Perigosos — filme divisor de águas para o diretor, que ali já abordava temas recorrentes em sua extensa obra, como violência, religião, dinheiro, culpa e poder. Seu estilo de direção enérgico e ousado chamou a atenção da atriz Ellen Burstyn, que, aconselhada por Francis Ford Coppola, o escolheu para dirigi-la em Alice Não Mora Mais Aqui, numa interpretação que lhe rendeu um Oscar de melhor atriz.

Foi em 1976 que Scorsese cravou seu nome na história do cinema. A visão sombria e atmosférica de uma solitária cidade de Nova York à noite, aliada à performance hipnótica de Robert De Niro como Travis Bickle, faz de Taxi Driver uma das contribuições mais significativas para o sucesso da figura do anti-herói nas narrativas cinematográficas. O filme, que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes daquele ano, marcou o pontapé da colaboração de Scorsese com outra figura importantíssima: o roteirista Paul Schrader, com quem ele voltaria a unir esforços no clássico Touro Indomável, de 1981; no polêmico A Última Tentação de Cristo, de 1988; e no cult Vivendo no Limite, de 1999, com Nicolas Cage. Ao filmar Touro Indomável em preto e branco, o diretor ampliou seu repertório, empregando o uso extenso de câmera lenta, planos-sequências e distorções de perspectiva para conceber um retrato introspectivo e violento do campeão de boxe Jake LaMotta. Não à toa, o filme é considerado um dos maiores de todos os tempos e recebeu oito indicações ao Oscar, com De Niro tendo vencido o prêmio de melhor ator.

A versatilidade de Scorsese foi posta à prova nos anos 1980, quando o diretor flertou com o humor em O Rei da Comédia e Depois de Horas e conseguiu, ainda, fazer um filme sobre sinuca, A Cor do Dinheiro, ser um sucesso de bilheteria e render ao veterano Paul Newman seu tão aguardado Oscar de melhor ator, pela interpretação do jogador Edward ‘’Fast Eddie’’ Felso. Ainda assim, durante grande parte da segunda metade da década, o objetivo principal de Scorsese foi rodar A Última Tentação de Cristo. Por anos ele reescreveu o roteiro, debateu com financiadores e enfrentou problemas de produção até, finalmente, lançar o filme em 1988, com Willem Dafoe no papel de Jesus Cristo. O processo de investigação da religiosidade e da fé seria revisitado novamente na obra de Scorsese, completando uma não intencional trilogia espiritual com Kundun, de 1997, que remonta a trajetória do líder tibetano Dalai Lama; e Silêncio, de 2017, sobre a expedição de padres jesuítas portugueses ao Japão feudal, quando o cristianismo era proibido.

Martin Scorsese durante as problemáticas filmagens de 'A Última Tentação de Cristo'

Martin Scorsese durante as problemáticas filmagens de 'A Última Tentação de Cristo'

Divulgação

Uma vez superados os percalços que o épico religioso proporcionou, Scorsese começou a filmar seu longa seguinte a partir de um livro escrito por Nicholas Pileggi, que o conectou como nunca com o submundo da máfia. Em Os Bons Companheiros, o diretor detectou humor nos momentos mais sombrios, com fascínio e glamour por seus personagens moralmente dúbios, ao contar a história de vida de um rapaz de classe trabalhadora do Brooklyn que sobe aos poucos na hierarquia criminosa. A relação de Scorsese com mafiosos e gângsteres, que começara com Caminhos Perigosos, agora consolidava mecanismos e ideias que o associariam para sempre a essa temática.

A narração em primeira pessoa por parte do protagonista, por exemplo, foi fundamental para o desenvolvimento e o aumento do impacto da história não apenas em Os Bons Companheiros; mas também em Cassino, de 1995, sobre o controle dos gângsters no mercado dos cassinos em Las Vegas; e em O Irlandês, de 2019, possivelmente o trabalho mais maduro do cineasta, que reuniu três tesouros da atuação americana — De Niro, Al Pacino e Joe Pesci — para estrelar um épico da máfia, que funciona como uma espécie de epitáfio, trazendo um ponto de vista melancólico sobre o tema.

Martin Scorsese com os atores Robert De Niro e Joe Pesci no set de 'O Irlandês'

Martin Scorsese com os atores Robert De Niro e Joe Pesci no set de 'O Irlandês'

Divulgação

A partir da virada do século, Scorsese fez de Leonardo DiCaprio seu novo Robert De Niro. O relacionamento da dupla acabou por se tornar uma das colaborações de maior sucesso financeiro na indústria cinematográfica, arrecadando cerca de US$ 1,3 bilhão em ganhos de seus cinco longas-metragens: Gangues de Nova York, de 2002, drama de época situado no século XIX, sobre os primórdios do crime nos Estados Unidos; O Aviador, de 2004, cinebiografia sobre o excêntrico piloto/magnata Howard Hughes; Os Infiltrados, que rendeu ao diretor seu primeiro e único Oscar; o suspense Ilha do Medo; e o fascinante O Lobo de Wall Street, de 2013 — esse último o mais lucrativo de toda a carreira do cineasta, baseado nas memórias do corrupto corretor da bolsa Jordan Belfort, numa mistura ousada de comédia ácida, drama investigativo e linguagem suja. Tais constantes reinvenções também subverteram todas as expectavas quando Scorsese fez de seu primeiro filme de aventura, voltado para o público infanto-juvenil, uma das mais comoventes e sensíveis homenagens à sétima arte, especialmente ao pioneiro do cinema Georges Méliès. A Invenção de Hugo Cabret, de 2011, foi a primeira incursão do cineasta no uso do 3D, para contar a história de um jovem órfão parisiense que cuida dos relógios de uma estação de trem durante a década de 1930.

Scorsese no set de 'The Last Walt'z, filme documentário sobre o show de despedida do grupo The Band

Scorsese no set de 'The Last Walt'z, filme documentário sobre o show de despedida do grupo The Band

Neal Petters Collection

SCORSESE E A ARQUEOLOGIA MUSICAL

Se não bastasse ser um dos principais pesquisadores e preservadores da história do cinema, tendo criado a The Film Foundation para tal propósito, Scorsese também documentou registros históricos da música popular, começando como assistente de direção no famoso filme sobre o Festival de Woodstock, e, depois, ao dirigir o icônico Last Waltz: o Último Concerto de Rock, de 1978, que retrata o último show do grupo canadense The Band, com participações de Van Morrison, Muddy Waters, Joni Mitchell e Neil Young, entre outros. Em 2005, Scorsese escavou a fundo a história de Bob Dylan em No Direction Home, documentário de quase quatro horas de duração e com proposta inversa à de Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese, de 2017, que tem novamente o compositor folk como objeto de estudo, mas dessa vez sob uma narrativa recheada de anedotas ficcionais que colorem uma célebre turnê do cantor pelos Estados Unidos em 1975.

Além de Dylan, Scorsese e os Rolling Stones também compartilham uma simbiose que acarretou em uma série de colaborações. Canções da banda inglesa são recorrentes nos filmes do diretor desde Caminhos Perigosos. Logo, era esperado que ele acabasse dirigindo um filme-concerto do grupo — o que de fato aconteceu, em 2008, no visceral Shine a Light, gravado no Beacon Theatre, em Nova York. “Meus filmes seriam impensáveis sem eles”, disse Scorsese certa vez. Mas, curiosamente, é sobre o beatle George Harrison a grande obra-prima do diretor em termos de documentário musical. Em Living in the Material World, produzido pela HBO e vencedor de dois Emmys, Scorsese examina a misteriosa personalidade do guitarrista dos Beatles por meio de relatos íntimos de amigos e familiares do músico.

Leonardo DiCaprio retoma a parceria com Scorsese no próximo longa do diretor, 'Killers of the Flower Moon', com previsão de lançamento para 2023

Leonardo DiCaprio retoma a parceria com Scorsese no próximo longa do diretor, 'Killers of the Flower Moon', com previsão de lançamento para 2023

Divulgação

KILLERS OF THE FLOWER MOON: MAIS UM ÉPICO NA CARREIRA DO DIRETOR

Mesmo aos 80 anos, Scorsese não dá sinais de que vai desacelerar o ritmo. Após ter se aliado à Netflix na milionária produção de O Irlandês, ele recorreu ao poderio financeiro da Apple para realizar seu próximo longa, com orçamento de mais de 200 milhões de dólares e que será o primeiro western da carreira do diretor. Killers of the Flower Moon tem previsão de estreia para a próxima edição do Festival de Cannes, em maio de 2023. O filme é baseado no livro jornalístico homônimo de David Grann e girará em torno de uma série de assassinatos na nação indígena Osage, em Oklahoma, na década de 1920 — caso que deu origem ao FBI. A produção, que já teve as filmagens concluídas, será estrelada por Leonardo DiCaprio, Robert De Niro e Jesse Plemons.

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