Caça-níqueis virtuais: produtoras transformam games em cassinos e quem perde é o jogador
Grandes empresas apostam em itens colecionáveis e estratégias de jogos de azar para aumentar os lucros
Games|Calum Marsh, do The New York Times
O preço que aparece na capa da maioria dos videogames esportivos é só a primeira coisa que os jogadores geralmente pagam.
O gênero está repleto de microtransações, com compras dentro do game que seduzem aqueles que querem ser competitivos durante as partidas on-line nos modos de jogo mais populares e robustos. “Cards” raros dos atletas mais cobiçados estão escondidos em pacotes que podem ser adquiridos usando uma moeda própria. Esta pode ser obtida lentamente durante o jogo ou pode ser comprada com dinheiro de verdade.
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Um fã de futebol que deseje montar um time competitivo no modo Ultimate Team, do FC 24 – ou que queira ter Kylian Mbappé ou Lionel Messi como capitão do time – tem de gastar muito dinheiro em pacotes de cards ou ganhar moeda virtual no decorrer de centenas de horas de jogo. É a mesma história no NBA 2K24, cujo modo MyTEAM exige que os jogadores desembolsem uma boa quantidade de moedas para comprar pacotes de cards que permitem montar um time com nomes como Kevin Durant ou Luka Doncic.
As chances para gastar se parecem muito com as dos cassinos reais. Ao iniciar o NBA 2K24, o jogador é imediatamente inundado com oportunidades para comprar novos itens e pacotes de edição limitada. Quando estes são abertos, encantam com um visual esteticamente atraente, em vez de simplesmente revelar seu conteúdo. Os pacotes explodem e se espalham acompanhados por animações complexas e efeitos sonoros caprichosamente criados para deslumbrar.
“O jogo está constantemente apresentando ao jogador um card especial. LeBron James, o gigante de dois metros do Lakers, por exemplo, só pode ser obtido por uma semana, pois fica disponível dentro de certo pacote ou de outro e as chances de obtê-lo sem usar as moedas são astronomicamente impossíveis. Eles permitem que você jogue sem gastar dinheiro apenas para dizer que você pode fazer isso, mas é inevitável que gaste”, disse Jordan Middler, crítico do Video Games Chronicle.
Os cards virtuais são tremendamente lucrativos para as editoras 2K e Electronic Arts, que os aplicam no jogo de futebol FC (anteriormente conhecido como Fifa), no jogo Madden, da NFL, e no ressuscitado College Football.
Microtransações
A Take-Two Interactive, empresa controladora da 2K e da Rockstar Games, que produz a série Grand Theft Auto, declarou em suas demonstrações financeiras que as microtransações representaram 79 por cento da receita da empresa no último ano fiscal, cerca de US$ 4,2 bilhões. Os games NBA 2K23 e NBA 2K24 estavam entre os maiores contribuintes.
No mesmo período, as microtransações representaram 73 por cento, cerca de US$ 5,6 bilhões, da receita da Electronic Arts, que também publica The Sims e Apex Legends. Um representante da 2K não quis comentar. Já a Electronic Arts declarou que as microtransações são opcionais e ajudam a pagar pelas atualizações de conteúdo que o público aguarda regularmente.
“Não despachamos mais CD-ROMs pelo correio e os deixamos de lado quando perderam a utilidade. A expectativa para a maioria dos nossos jogos é prosseguir com a entrega de conteúdos dinâmicos e imediatos, e evoluir continuamente para entregar ainda mais valor aos nossos jogadores”, afirmou Kerry Hopkins, vice-presidente sênior de assuntos globais da Electronic Arts.
Com tanto dinheiro em jogo, as empresas priorizam as seções de seus games que usam microtransações. Esse incentivo é uma mudança significativa em relação às estratégias dos jogos esportivos do fim dos anos 1990 e do início dos anos 2000. Naquela época, a ênfase estava na melhora da jogabilidade e das imagens gráficas para produzir simulações mais realistas. Títulos como NBA 2K1 e Madden 2003 continuam entre os mais aclamados até hoje.
Agora, os jogos dessas mesmas franquias, que não têm concorrência direta por causa de licenças exclusivas ou caras, recebem avaliações medianas. “O NBA 2K24 quer que você abra seu cofre e o pune se não fizer isso”, escreveu um crítico para o IGN, que chamou as microtransações de “abomináveis”.
O NBA 2K24 apresenta dois tipos de moeda de jogo: VC (moeda virtual) e MTP (pontos MyTEAM), que podem ser comprados. Com US$ 4,99 um jogador pode comprar 21 mil MTP ou 15 mil VC. Há descontos para incentivar compras maiores que podem chegar a um milhão de MTP ou 700 mil VC ao custo de US$ 149,99. Se parece complicado, é assim mesmo; é intencional. O processo pouco transparente dificulta que os jogadores tenham ideia de quanto estão gastando.
Pacotes de cards de nível básico, que custam o equivalente a cerca de US$ 1, incluem atletas que ficam no banco de reservas como Dennis Smith Jr., Jordan Nwora e Malachi Flynn. Pacotes de edição limitada custam até US$ 50 e anunciam “uma grande chance” de incluir lendas da NBA como Hakeem Olajuwon ou Allen Iverson. O jogo, ocasionalmente, promove ofertas especiais para comprar cards de atletas de ponta. Victor Wembanyama, altamente cotado, escolhido unanimemente como o “novato do ano” da temporada passada, custa cerca de US$ 20.
As microtransações fazem parte dos videogames há pelo menos duas décadas. Elas permitem que os jogadores comprem imóveis no Second Life e armaduras de cavalo em The Elder Scrolls IV: Oblivion. Melhorias cosméticas como escudos de guerra e trajes de personagens são difundidas em quase todos os gêneros; servem para financiar games como League of Legends, Overwatch e Genshin Impact.
Mas os jogos esportivos vão muito além da venda de camisetas e tênis.
Esquema injusto
O Ultimate Team é um elaborado modo de gestão de desejos em que os jogadores podem construir seu time dos sonhos colecionando e trocando cards esportivos digitais. Desde quando foi introduzido no Fifa 09, tornou-se, de longe, o jeito mais popular de jogar games como o FC e o Madden, suplantando outros modos em que era permitido jogar utilizando as equipes completas dos times da vida real.
Outras franquias esportivas replicaram o modelo, uma espécie de sistema de loteria baseado em loot boxes (algo como “caixas de pilhagem”, que enfrentaram desafios legislativos em alguns países). A Bélgica chegou a proibir as loot boxes depois de um caso envolvendo o Fifa 18; já o tribunal mais alto da Holanda decidiu que as loot boxes do Fifa não eram jogos de azar.
Os programadores de games, geralmente, estão atentos ao estigma em torno das microtransações, e ajustam os sistemas – que lhes garantem sucesso econômico – quando as queixas dos jogadores aumentam. A Electronic Arts enfatiza que os jogadores não são obrigados a gastar dinheiro para participar do Ultimate Team. Garante que é possível jogar todo o game usando a moeda virtual que se pode obter por meio dos desafios. “Quando os jogadores gastam US$ 70 em um de nossos jogos, queremos proporcionar a eles uma experiência completa, independentemente de optarem por continuar gastando mais no jogo. Gastar é sempre uma escolha”, disse Hopkins.
Os críticos, no entanto, insistem que é quase impossível jogar o Ultimate Team sem gastar em pacotes de cards; não há outra forma de não se sentir completamente excluído. O modo multijogador on-line favorece muito as equipes que possuem talentos especiais. Sem os cards ultrarraros que desbloqueiam os atletas famosos, as equipes padrão, simplesmente, não conseguem ser competitivas.
Uma análise do FC 24, feita pelo IGN, ponderou que o Ultimate Team “se mostra sempre intrinsecamente injusto, já que só os jogadores que estão dispostos a gastar dinheiro real em microtransações conseguem obter pacotes mais favoráveis e montam um time muito melhor e em menos tempo”.
Para incentivar os jogadores a gastar dinheiro, a Electronic Arts e a 2K tornaram a experiência de abrir virtualmente os pacotes de cards um verdadeiro espetáculo. Uma pequena descarga de dopamina desencadeia o desejo de comprar ainda mais.
Segundo Jamie Madigan, psicóloga especialista em videogames, esses sistemas operam no mesmo princípio de recompensas aleatórias das máquinas caça-níqueis. A antecipação é mais importante do que a recompensa em si.
Hopkins, a vice-presidente sênior da Electronic Arts, afirmou que jogos como o FC estão reinventando a longa tradição de itens colecionáveis esportivos, como os cards de beisebol ou os adesivos impressos pela Panini, acrescentando que colecionar cards desses jogos reais é um sistema ainda mais sofisticado do que simplesmente apertar um botão para receber uma recompensa aleatória. “É mais do que colecionar. Há estratégia, habilidade e química a considerar ao construir um time de sucesso”, disse ela, referindo-se a um sistema de atributos complexos que mobilizam os jogadores.
Considerando o grande público que os games esportivos atraem, podemos acreditar que muitos jogadores apreciam o processo de gerenciar suas coleções de cards e construir um time de sucesso. Quando o próximo Madden ou NBA 2K for lançado este ano, milhões de jogadores comprarão o novo título, mesmo que deixem para trás todos os seus antigos cards.
Gostou do NBA 2K24 e quer pegar o novo NBA 2K25 no próximo semestre? Você vai começar do zero. “Todos os seus atletas anteriores se tornarão irrelevantes, porque, embora você ainda possa jogar o mesmo jogo, todo o time vai passar para a nova versão e todo o seu dinheiro vai desaparecer. Mesmo que você tenha gasto muita grana... já era”, observou Middler.
c. 2024 The New York Times Company