Cazuza nasceu na burguesia, mas era artista e estava ao lado do povo
Cantor criado na elite carioca ficou conhecido também pelas letras politizadas que criticavam e ironizavam as classes dominantes
Música|Helder Maldonado, do R7

Cazuza era burguês. E nunca escondeu sua origem social. Filho de um executivo de gravadora, ele passou a carreira toda explicando que fez sucesso apesar disso e não por conta do parentesco.
Os pais do cantor sempre o incentivaram a completar o curso superior e não se envolver com o segmento artístico. Rebelde, ele insistiu na ideia e resolveu provar que teria condições para se manter nesse ambiente.
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No fim, se transformar em um astro foi um desafio que ele cumpriu com a meta de garantir que os pais estavam errados. E eles aceitaram ser o lado "perdedor" desse embate, com certo orgulho.
Mas essa subversão não era assim tão profunda. Afinal, Cazuza era filho único, assumidamente mimado e muito ligado à família tradicinal da zona do Rio. E amava os pais. Tanto que, como poucos músicos no mundo, ele sempre foi flagrado ao lado da mãe, Lucinha Araújo, em fotos de bastidores e no ambiente doméstico. Um roqueiro que conseguia caminhar pelos extremos da boemia e da vida familiar.
E esse equilíbrio ele tentava levar para as letras de protesto que escreveu. Embora Cazuza desse preferência para cantar seu estilo de vida boêmio e as dores de amor, ele se arriscou em letras políticas e nunca tentou fugir de perguntas sobre o tema. E diferentemente do que se podia esperar de um filho da elite, Cazuza optava por criticar o poder, o capitalismo e se declarar abertamente socialista.
Quando Leonel Brizola foi eleito governador do Rio de Janeiro, em 1983, ele vibrou com a vitória sobre Moreira Franco, o candidato da situação naquele momento. Em entrevista ao Jornal do Brasil, comentou o fato, com empolgação.
— Acho uma experiência fantástica, totalmente rock’n’roll. Brizola dá uma segurança pra gente, tem uma filha que é mais louca do que todo mundo [a cantora Neuzinha Brizola], que está aqui, ele é um cara socialista, um cara [Fraçois] Mitterrand [político francês], me sinto muito feliz de viver nessa cidade que elegeu o PDT, que foi execrado no Brasil inteiro. Aqui vai nascer uma coisa nova que é rock’n’roll, uma coisa alternativa. O PDT é igual aquele sanduíche que vende na praia, alternativo.
Mas ao mesmo tempo que sobravam elogios a um candidato de esquerda, ele reconhecia que a Ditadura trouxe alguns benefícios ao País, como nessa declaração à Veja, em 1989.
— O governo militar modernizou o País, puseram o Brasil no século 20, embora à custa do sacrifício do povo.
Em entrevista ao Jornal da Tarde, cinco anos depois, Cazuza deixavou claro que seu posicionamento era completamente passional. O músico reconheceu, então, que não entendia profundamente do assunto, mas tinha ideais que formou em papos de bar nas madrugadas do Rio. E também influenciado pelo que ele considerava errado dentro do recorte em que cresceu. Mal comparando, ele era um indignado de rede social, antes das redes sociais e antes das fake news.

— Eu achava que não podia falar sobre política, por não ser uma pessoa política. Eu tinha muito preconceito em falar no plural, achava que só falava bem do meu mundinho. Isso começou a mudar quando fiz a letra de Um Trem Pras Estrelas, com a música do Gil, a partir do roteiro do filme de Cacá Diegues. Depois, conversando com mil pessoas, inclusive Gil, pensei por que não mostrar a minha visão, por mais ingênua que ela seja? Não sei quanto é a dívida externa, qual é o rombo das estatais… não estou por dentro dessas coisas, tenho uma visão romântica, mas a maioria da população também deve ter uma visão ingênua, então por que não me posicionar?
"Eu não gosto de andar só com preto%2C só com judeu%2C só com viado. Eu gosto de viver é com todo mundo junto"
Levantando bandeiras
O discurso sobre questões de gênero e liberação de drogas parece algo recente. Mas na década de 80, os mesmos assuntos estavam sendo tratados com a mesma intensidade. Cazuza, um dos primeiros artistas brasileiros a se assumir bissexual e usuário recreativo de drogas, não podia deixar de opinar sobre o tema, quando questionado.
A respeito da orientação sexual, o cantor ia em um sentido contrário do que se esperava. Ele não queria compor um gueto e minorias. O compositor almejava unificação de todas as minorias e misturas sem preconceitos, como deixou claro em entrevista ao Correio Braziliense, em 1985.

— Não me sinto minoria, nunca me senti. Eu tenho horror a gueto. Quero viver num mundo diferente. Quero viver num mundo em que todo mundo conviva igual. Não faria parte de um gueto, nunca. Eu não gosto de andar só com preto, só com judeu, só com viado. Eu gosto de viver é com todo mundo junto. É uma experiência que eu tenho de vida. Me sentiria muito mal em levantar bandeira de qualquer coisa que fosse muito específico, portanto não quero levantar bandeira de minorias. Acho que a coisa tem que ser maioral.
Sobre drogas, Cazuza foi mais objetivo que a média ao assumir que bebia muito e a qualquer hora do dia e discordava de como o usuário era tratado pela Polícia Militar ao ser flagrado consumindo maconha. Mas como integrante da burguesia, ele fazia análises mais focadas em seu círculo social do que na favela.
— É o cúmulo prender um garoto inteligente, que faz faculdade, que é futuro do Brasil, só porque foi pego com um baseado. É um absurdo internar esse garoto num lugar onde vai ficar tomando remédio. Tem que haver leis mais liberalizantes para isso. É claro que o Brasil tem coisas muito mais sérias para resolver. Mas é uma coisa que afeta a mim, que sou classe média, burguês. O que eu acho bacana na política da democracia ocidental é isso. É você poder votar no cara que vai tentar resolver o seu problema mais imediato. Eu falo de cadeia porque já fui preso várias vezes. É maior a violência contra o jovem. O jovem está sempre experimentando coisas novas, que às vezes são até passageiras.
"Sou meio ufanista%2C mas a miséria%2C a máfia e o FMI mataram o orgulho da gente"

O passado é sempre melhor
Existe uma máxima repetida à exaustão em todas as gerações: a de que antigamente tudo era mais belo. O distanciamento histórico traz falsas memórias de períodos que muitas vezes nem vivemos. E Cazuza, apesar de tudo, não estava livre disso. Durante entrevista ao Jornal do Brasil, em 1985, ele criticou os jovens da década de 80. Para ele, a geração era muito careta e ele "preferia ter vivido os anos 60". Alguma coincidência com quem vive a década atual e diz preferir os 80 não é mera coincidência.
E assim como muitos jovens nos dias de hoje, Cazuza se mostrava desesperançoso com a política e os rumos do País na mesma entrevista.
— Sou meio ufanista, mas a miséria, a máfia e o FMI mataram o orgulho da gente.
E ele completou esse raciocínio, apontando que nada muda desde o descobrimento em uma entrevista concedida três anos depois, na revista Interview.
— Os problemas do Brasil parecem ser os mesmos desde o descobrimento. A renda concentrada, a maioria da população sem acesso a nada. A classe média paga o ônus de morar num país miserável. Coisas que, parece, vão continuar sempre. Nós teríamos saída, pois nossa estrutura industrial até permitiria isso. O problema do Brasil é a classe dominante, mais nada. Os políticos são desonestos. A mentalidade do brasileiro é muito individualista: adora levar vantagem em tudo.
"A minha geração se uniu pela droga%3A ele é careta e ele é doidão. Droga não é ideologia%2C é uma opção pessoal"
Explicando as letras
Ideologia, Burguesia e Brasil são as mais conhecidas composições de Cazuza que seguem uma temática política. As três se transformaram em hinos de uma geração e até hoje hoje entram em qualquer coletênea do cantor ou em lista das mais cantadas em karaokês.
O músico explicou que a indignação foi o motor que motivou essa guinada que ele teve de ser mais politizado ao deixar o Barão Vermelho. Junto disso, veio o fim da Ditadura e o cenário perfeito para a produção de material com esse viés. É o que ele deixou transparecer em matéria da Revista Manchete, em 1987.
— Sempre tive horror de política, mas tem coisas que você não precisa saber, qualquer burro vê. Brasil é uma música crítica, mas não tem nada a ver com uma fase política. Eu simplesmente passei o ano passado (1986) do lado de dentro, e quando abri a janela vi um País totalmente ridículo. O Sarney que era o "não diretas" virou o rei da Democracia. Os fãs de hoje são os linchadores de amanhã (frase de Millôr citada em Vai à Luta). O Brasil é muito triste trópico”.
Ao O Globo, em 1988, ele voltou a atacar a própria geração e a falta de engajamento político dela. Cazuza destacou que, nos anos 60, quando era criança, a polarização política unia e desunia pessoas — assim como na atualidade. Mas na época em que ele era jovem, as drogas fizeram esse papel.

— Ideologia fala da minha geração sem ideologia, compactada entre os anos 60 e os dias de hoje. Eu fui criado em plena Ditadura, quando não se podia dizer isso ou aquilo, em que tudo era proibido. Uma geração muito desunida. Nos anos 60, as pessoas se uniam pela ideologia. "Eu sou da esquerda, você é de esquerda? Então a gente é amigo". A minha geração se uniu pela droga: ele é careta e ele é doidão. Droga não é ideologia, é uma opção pessoal. A garotada teve a sorte de pegar a coisa pronta e aí pode decidir o que fazer pelo País, embora do jeito que o Brasil está, haja muita desesperança.
Apesar da desesperança mostrada em muitas frases e letras, Cazuza era o mais brasileiro dos roqueiros dos anos 80. E talvez o menos roqueiro também. Segundo ele, o rock nunca foi seu estilo preferido. Dolores Duran, Nelson Gonçalves, Lupcínio Rodrigues e Cartola faziam a cabeça dele.
Por isso, em 1988, ele contou à revista Manchete que nem todos os problemas que o País passava o fariam mudar daqui. O amor que ele tinha pela forma de viver no Brasil após conhecer o exterior o fez lutar e criticar a terra natal até nas últimas entrevistas. Enquanto muitos acreditam que a única saída para o Brasil é o aeroporto, Cazuza celebrava o perfil e os hábitos positivos dos brasileiros como justificativa para ficar.
— Eu sempre fui patriota, de gostar de ser brasileiro, de gostar de morar no Rio de Janeiro, de adorar isto aqui. Tanto que eu fiquei seis meses na Califórnia e voltei correndo. Jamais pensei em viver fora do Brasil, nunca sonhei com isso, seria muito infeliz se morasse fora. Sou daquelas pessoas que têm amor à terra. Mesmo na época da Ditadura, com aquele clima tenso, militarismo. Eu cresci em meio a isso, e a gente debochava muito do País. Porque o brasileiro é muito Macunaíma, debocha de si mesmo, mas acho isso supersaudável. É uma prova do bom humor do brasileiro, enquanto o americano é todo duro. Aqui no Brasil, a gente não se leva à sério. De Gaulle tinha razão: não é um País sério. E o brasileiro é genial por isso.