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O poder da careca da cantora Sinead O'Connor

A cabeça raspada da artista irlandesa, que morreu, aos 56 anos, nesta quarta (26), fazia a ponte entre a revolta e o sublime

Música|Do R7


Sinead O'Connor morreu, aos 56 anos
Sinead O'Connor morreu, aos 56 anos

Foi a careca que virou símbolo de 1 milhão de rebeliões sonhadoras; a cabeça raspada que fazia a ponte entre a revolta e o sublime. É quase impossível pensar em Sinead O'Connor — cantora irlandesa cuja morte foi anunciada nesta quarta-feira, aos 56 anos —, ou em sua obra, sem pensar no seu cabelo. Ou na falta dele.

Não pensar na curva notável de seu crânio exposto na capa do álbum de estreia, The Lion and the Cobra, de 1987, o rosto registrado no ato do grito; na nudez que parecia representar no vídeo de 1990, Nothing Compares 2 U, os olhos azuis cheios de lágrimas; na pureza do contorno na capa da autobiografia de 2021, Rememberings, contida em um capítulo inteiro intitulado "Raspei a cabeça".

De fato, era sua marca registrada — em uma reportagem da Billboard, em 2014, ela se identificou como "a irlandesa careca" —, como também eram o coturno da Dr. Martens e o jeans rasgado, que a acompanhou durante a vida, da mesma forma que sua atitude de picar a foto do papa ao vivo, em 1992, no Saturday Night Live. Mesmo nas poucas ocasiões em que deixou o cabelo voltar a crescer, era geralmente descrita como "ex-careca". E, como tal, foi parte intrínseca da renegociação dos antigos estereótipos de gênero, sexualidade, rebelião e libertação que continuam até hoje. "Para mim, parece que nem tenho cabelo", disse ela ao The New York Times, em 2021.

Agora que a careca feminina se tornou mais comum, símbolo de identidade para mulheres como Ayanna Pressley, deputada democrata por Massachussets, que expôs o problema de sua alopecia em 2020, e X González, aluna da Marjory Stoneman Douglas High School (na época conhecida como Emma), que se tornou ativista pelo controle de armas, sem falar de Dora Milaje, de Pantera Negra, talvez seja difícil lembrar ou entender quanto era extraordinária quando O'Connor surgiu.

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Mas o aparente repúdio da própria beleza delicada em meio a tantas rainhas adolescentes do pop — numa época em que usar o cabelão praticamente como um capacete era moda e raspar a cabeça era encarado como punição — era uma declaração de singularidade, tanto quanto seu som.

Talvez tenha sido o primeiro indício da atitude controversa que viria a seguir, incluindo a recusa em tocar o hino nacional antes de seus shows e a reprodução do logotipo do Public Enemy em um dos lados da cabeça na cerimônia do Grammy de 1989, quando a organização se recusou a televisionar a entrega do primeiro prêmio para melhor performance de rap da história.

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Chegou a dar várias explicações para justificar a escolha, mas todas as histórias se resumiam à mesma coisa, ou seja, a recusa em acatar as definições tradicionais de "beleza" estabelecidas pelo olhar masculino desde os tempos de Rapunzel e Lady Godiva. "Ao raspar a cabeça, ela mostrou que estava se livrando de uma falsa narrativa, literalmente", afirmou Allyson McCabe, autora de Why Sinead O'Connor Matters.

Em 1991, a cantora disse à Spin: "Raspar a cabeça para mim nunca foi uma coisa consciente. Eu não estava querendo provar nada, não. Só que, um dia, estava entediada e quis passar a máquina; foi só isso mesmo". Mas completou: "As mulheres admiradas são as que têm cabelo loiro, bocão, usam batom vermelho e saia curta, porque essa é a imagem feminina aceitável; como não tenho cabelo, as pessoas acham que sou revoltada".

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Em entrevista ao talk show Dr. Phil, em 2017, ela explicou que, durante a infância abusiva, a mãe a comparava à irmã, que, ao contrário de si, era ruiva e tinha cabelos compridos. "Quando eu ainda tinha cabelo, ela nos apresentava como a 'filha bonita' e a 'filha feia'. Por isso raspei; não queria correr o risco de ser bonita. Sem contar que era perigoso; eu era violentada e molestada em todo lugar. Não queria me vestir de menininha. Não queria ser bela."

Em seu livro de memórias, conta que, quando estava gravando o primeiro álbum, em Londres, ouviu de um dos executivos da gravadora que deveria deixar o cabelo crescer (na época estava curto, não raspado) e se vestir de maneira mais feminina. No dia seguinte, foi à barbearia e tosou tudo.

No período que se seguiu à sua participação no Saturday Night Live, quando foi cancelada pela indústria fonográfica e diagnosticada como sendo bipolar, sua careca era vista como sinal de instabilidade (como também foi o caso de Britney Spears, anos depois). Entretanto, o fato de tê-la mantido até o fim da vida mostra que era um sinal de individualidade.

Ela escreveu em seu livro que, na primeira olhada no espelho depois da ida à barbearia, se sentiu "uma alienígena". Outra forma de descrever o resultado, porém, é que ela começou a se parecer com a mulher que se tornou. E, ao se tornar tal mulher — dando-se permissão para tal —, por tabela, permitiu que o mundo também a conhecesse.

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