Projeto Rima Dela mostra que lugar de mulher também é no rap
Trabalho debate visibilidade feminina com grandes nomes do rap nacional
Música|Ana Beatriz Azevedo, do R7*

A representatividade feminina no rap é algo que vem sendo cada vez mais colocado em pauta, não só através de versos em que elas reafirmam sua posição e empoderamento, mas por meio de movimentações dentro do próprio movimento. Projetos como a Cypher Rima Dela#1, lançada nesta segunda-feira (16), são um belo exemplo disso. Além das oito mulheres rimando, Issa Paz, Sara Donato, Anarka, Bia Doxum, Brisaflow, Clara Lima, Alinega e Alt Niss, houve participação feminina em todas as etapas, desde a produção, que ficou com o coletivo feminino Soul Di Rua, com direção de Becca Vilaça, até produção audiovisual, que coube a Karú Martins. A direção de voz ficou com Daniel Cassiano.
Antes mesmo de falar sobre o conteúdo da cypher — composições de rap que reúnem vários MCs — que traz esse peso em seus versos, é importante ressaltar o simbolismo de se ter um projeto dentro do rap com mulheres envolvidas em todos os níveis, ainda mais se tratando de um trabalho nesses moldes. Nos últimos tempos, foram incontáveis as cyphers lançadas, mas difíceis de numerar as que tinham mulheres participando ou sendo protagonistas.
Sara Donato, rimadora do interior de São Paulo, que teve como inspiração primeira a Mc Kelly, de São Carlos, sua cidade natal, sempre trouxe o nome do interior e hoje leva o Rap Plus Size junto com a Issa Paz pelo Brasil. Para ela participar desse projeto é continuar uma resistência já desenhada anteriormente.
— A gente lançou em 2016 a primeira cypher só de mina que eu participei porque a gente não é chamada pras outras cyphers, porque saiu 10 cypher na semana e uma tem uma mina, e olha lá. E a gente fez isso por quê? Porque as mulheres precisam falar, porque elas precisam ser ouvidas. Tem mina que canta a três, quatro anos e tem um som gravado, porque o acesso ainda é bem restrito. E aí a gente se pergunta: será que as mina não tem qualidade suficiente? E a gente vê que é uma questão de visibilidade isso.
"As mulheres precisam falar%2C porque elas precisam ser ouvidas"

Para Issa Paz, a perspectiva do empoderamento na origem da ação — e não só em versos que muitas vezes não se refletem na realidade vivida pelas mulheres dentro do rap — também não se difere muito da Sara, que divide com ela a composição do Rap Plus Size. Ela ressalta a importância do formato do cypher para a união das mulheres no rap.
— A gente se junta pra mostrar que a gente tem voz, pras mina é uma representatividade gigante, é superimportante isso, juntar mulheres de vários lugares. Isso é sensacional, mostra a força que a gente tem de fato. O cypher pras mina é uma parada de união, não é só mais um jeito novo de vender música.
Muito da discussão sobre a representatividade feminina no rap vem se tornando cada vez mais quente por conta da ampliação do debate feminista, entretanto, muito dessa discussão acaba se limitando a um universo universitário, branco e de classe média. Alinega, Anarka e Altniss pretendem subverter essa realidade.
Em seus versos, Altiniss questiona “como que fala fia, é feminismo? Amanhã eu levanto às 5h”. Alinega se aprofunda no tema.
— Eu acho que o feminismo, às vezes, não chega na quebrada, para quem precisa chegar mesmo. E a gente precisa ter essa voz dentro da quebrada e despertar outras mina também, "tá" ligado? Pro movimento acordar mesmo, despertar. Eu tenho essa missão.

E a Anarka completa.
— O feminismo, de fato, ainda é bem inacessível e, no que ele é acessível, ele é superficial. Eu, Anarka falando, como mina preta, eu não me reconheço no discurso das mulheres brancas de libertação sexual porque, se você for ver, o corpo da mulher preta sempre foi livre, ele sempre foi um bagulho público desde lá atrás. A minha filosofia de vida é mostrar a nossa imposição além desse discurso superficial. Porque se você vai ver sobre sororidade, é um bagulho que de quebrada pra quebrada acontece, mas sem esse termo acadêmico. Sei lá, é a tia que está precisando do arroz e vai na casa da outra pegar, já acontece, mas em um outro tipo de visão.
A libertação feminina no rap se impõe de várias maneiras, inclusive na subversão de papéis esperados socialmente para as mulheres e da performance de feminilidade. "Eu faço essa parada de música pra não me sentir só. Na minha parte, eu expresso essa liberdade mesmo, de ser o que a gente é, de ser o que a gente quiser ser e ter o que a gente quer ter", fala Clara Lima, Mc de Belo Horizonte que lançou recentemente o álbum Transgressão.
"Foram várias as vezes que ouvi difamações e coisas desrespeitosas%2C muitas vezes de homens que o público de rap coloca em pedestais"
Brisaflow também subverte questões romantizadas para a mulher, como a maternidade, e fala das batalhas de ser mãe solteira nas suas rimas.
— Eu estava numa semana muito louca de mãe solo e eu tinha que escrever logo. Coincidentemente, eu estava recebendo muitas mensagens de mães no meu Instagram e esse trem explodiu. Eu fiquei nessa brisa de sobrevivendo na selva, da mãe que é bem essa coisa de que você tem que estar na disposição de tudo e de tocar qualquer coisa o tempo todo com a cria nas costas.

Toda essa emancipação estrutural que cerca o projeto da cypher do Rima Dela é importante para as mulheres que já fazem rap e para aquelas que um dia vão fazer. No fim, essa é a parte mais relevante. “Foi importante escrever esses versos principalmente pra desaguar a mágoa do silenciamento que sofri como mulher dentro do hip hop. Comecei a cantar rap aos 14 anos e nesse começo conheci homens muito mais velhos, que muitas vezes chegavam na maldade. Foram várias as vezes que senti que me ofereciam alguma oportunidade achando que ganhariam algo em troca. Foram várias as vezes que ouvi difamações e coisas desrespeitosas, muitas vezes de homens que o público de rap coloca em pedestais. Principalmente quando se trata de mulheres pretas dentro do hip Hop, muito macho ainda reforça o esteriótipo de que mulher preta é quente, caliente. Acham que somos as mulheres que aceitam qualquer patifaria, que aguentam as ofensas com naturalidade. No verso eu vejo a possibilidade de transformar todo esse machismo em força pra me mover, força pra mover outras manas junto comigo. O silêncio dói demais e hoje a gente tem a voz", conta Bia Doxum. "Como disse no meu primeiro verso, 'Eu não sei quem denomina essa cena, mas me instiga tua ira quando quebro as algemas'", completa.
*Com supervisão de Thiago Calil