Apropriação cultural é um problema da indústria do entretenimento?
Anitta, Miley Cyrus e Kylie Jenner já estiveram no centro da polêmica
Pop|Helder Maldonado, do R7

Anitta, Geisy Arruda, Isabella Santoni, Vanessa Hudgens, Miley Cyrus e Kylie Jenner. Embora à primeira vista não pareçam ter nada em comum além da fama, todas elas foram acusadas de apropriação cultural nos últimos anos.
Os motivos são os mesmos: uso de tranças, dreadlocks, turbantes e outros elementos que podem, segundo os críticos, causar a falsa sensação de aceitação do negro na sociedade e na indústria da cultura e entretenimento.
Mas, diante das estatísticas, isso não se conecta à realidade. Os dados do Atlas da Violência, publicados no primeiro semestre de 2017, deixam claro que na realidade o negro ainda está em posição de vulnerabilidade em qualquer recorte. Seja na inferiorização no mercado de trabalho ou como principal vítima de violência doméstica e urbana.
Atualmente, de cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Enquanto a mortalidade de mulheres não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras o índice subiu 22%.
"Naturalizam todas as violências a que somos submetidos não apenas enquanto produtores de cultura e pensamento%2C mas também enquanto cidadãos"
Segundo Charô Nunes, escritora, urbanista e coordenadora do projeto Blogueiras Negras, o reconhecimento de que o País é racista vai além da desapropriação cultural (termo que ela prefere usar para se referir ao tema).
— Nós queremos, sim, discutir a desapropriação, mas nunca do ponto de vista da branquitude que minoriza e relativiza a discussão segundo seus interesses. Queremos discutir do ponto de vista da disputa de narrativas que justificam e naturalizam todas as violências a que somos submetidos não apenas enquanto produtores de cultura e pensamento, mas também enquanto cidadãos.
Para ela, o uso desses elementos por figuras públicas brancas cria a falsa ilusão de que o negro está sendo aceito, enquanto os números dizem o contrário.

— Trata-se de retirar corpos negros da equação. Logo, impedir que sejamos protagonistas de nossa própria cultura, que é desapropriada de seu sentido, ganhando apenas contornos capitalistas. Essa mesma lógica nos impede de estarmos nas posições de comando e poder, tanto da indústria cultural quanto das candidaturas políticas e dos cargos executivos nas grandes empresas.
Privilégio branco
O sucesso de artistas brancos dentro de segmentos de música negra (como Post Malone, no rap americano, ou Biel, no funk), prova que existe privilégio branco no show business? Para a escritora e ativista Larissa Santiago, isso é mais do que óbvio. No entanto, ela é contra vetar a participação de pessoas de pele clara em manifestações afro.
— É importante ressaltar aqui que todas as pessoas podem fazer tudo: dançar, cantar, usar vestimentas. Mas quando estamos falando de desapropriação cultural, estamos lidando com um sistema de valores, com algo estrutural. Quando um cantor se sente autorizado a capturar nossas músicas, nossas roupas, vocabulário, não é porque ele é apenas branco. Temos que levar em conta como isso circula na indústria cultural e como isso tem um impacto e recepção diferente quando é feito por um grupo de pessoas negras.
"A apropriação cultural da identidade negra está na tentativa cruel de relativizar e diminuir aquilo que nos dá a noção de pertencimento"
De acordo com a cantora e deputada estadual Leci Brandão (PC do B-SP), o silenciamento dos negros seria o principal resultado da apropriação cultural, já que um branco poderia propagar conscientização contra o racismo através das artes, porém sem nunca viver na pele o que um negro experimenta.
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— Funciona assim: queremos usar esse elemento da cultura negra, mas, antes de usá-lo, vamos fazer com que ele deixe de ser negro e seja identificado como brasileiro ou universal. Neste sentido, a apropriação cultural da identidade negra está na tentativa cruel de relativizar e diminuir aquilo que nos dá a noção de pertencimento.
Miscigenação
Segundo o censo populacional do IBGE, 45% da população se identifica como de cor "parda". O elevado número escancara duas realidades: o alto grau de miscigenação em nossa sociedade e, em alguns casos, a dificuldade em se reconhecer como negro.
Anitta mesmo é ora apontada como branca que se apropria e às vezes como negra empoderada que atingiu um status geralmente reservado a mulheres brancas na indústria.
Larissa, Charô e Leci, no entanto, preferem não personalizar o debate. Para elas, não importa se Neymar, Anitta ou Ronaldo se declaram ou não como negros.
A discussão, segundo elas, é mais profunda e menos generalizante e apontar nomes não ajuda no entendimento do problema, acredita Charô.
— Se a gente entrar aqui nas nomenclaturas e classificações (inclusive ditadas pelos institutos de pesquisa) racistas para branquear o Brasil, nossa entrevista jamais terá fim. Então veja: é muito mais complexo do que usar tranças ou dreads. Identidade racial no Brasil é tentativa de apagamento de uma identidade — a negra! É só checar a história pra ver como as políticas de migração, como as narrativas estão todas contra nós. A nossa identidade está para além desse joguete "é negro" ou "não é negro". O que queremos de fato discutir são políticas públicas, direito à vida, acesso a trabalho e dignidade.
Leci Brandão ainda ressalta que é preciso entender que o racismo no Brasil opera de forma estrutural.
"É diferente ir numa festa onde não estamos subalternizados limpando ou vendendo produtos na porta"
— É preciso dizer que a ideia de apropriação cultural sempre está associada à relação de opressão. Então, o que está no centro do debate sobre apropriação da cultura negra no Brasil é o racismo. A responsabilidade que devemos ter ao tratar deste assunto é imensa. Não podemos levar esse tema para a seara do "contra ou a favor".
Discussão dá visibilidade
Apesar de toda a discussão, a moda black está em alta tanto aqui quanto lá fora. Isso, apesar das ressalvas que precisam ser feitas, traz visibilidade para o movimento. O maior benefício não está tão evidente, que é a criação e fortalecimento de redes de empreendimento, geração de empregos e consumo entre pessoas negras.

No último São Paulo Fashion Week, a grife LAB, do rapper Emicida, teve grande destaque e espaço, a aponto de a expectativa em torno dela ser comparada à provocada por Gisele Bündchen no evento.
O espaço conquistado por cantoras como Karol Conká, Iza, Ludmilla e MC Carol mostra que, apesar de discreto, existe o reconhecimento da produção intelectual e cultural de pessoas negras na música.
Festas e eventos dedicados e organizados por protagonistas negros também estão cada vez mais comuns. Batekoo, I Love Cafusu, Pedra do Sal, Sarrada no Brejo e Um Baile Bom estão entre os principais eventos que promovem a cultura e a autonomia dos negros em variadas cidades do Brasil. Larissa Santiago ressalta que esse espaço de autonomia e aquilombamento fortalece as relações dos negros como líderes em diversos segmentos.
— É diferente ir numa festa onde não estamos subalternizados limpando ou vendendo produtos na porta. Quem idealizou, quem toca, quem faz a comida, quem recebe e quem frequenta é preto. E aí a mágica acontece. Isso é vitória nossa.