Em Porto Rico, governo cria polêmica com plano para remover gatos de parque
Moradores não querem que os animais sejam retirados, e suspeita é que retirada tenha relação com valorização imobiliária
RPet|Patricia Mazzei, do The New York Times
Os gatos selvagens vivem pelas ruas de paralelepípedos da Cidade Velha, em San Juan, há tanto tempo que a população já até perdeu a conta. Zanzam à volta da fortaleza histórica que se ergue sobre a baía e se escondem do sol forte sob os pés de uva-de-praia.
Os moradores os alimentam e os turistas os registram em fotos – mas talvez não por muito tempo mais, pois a agência federal responsável pelo forte e pelo terreno onde ele se encontra quer se livrar dos bichanos, alegando que são um estorvo e podem transmitir doenças.
A verdade é que Porto Rico, território norte-americano castigado por problemas financeiros e desastres naturais, tem coisas mais importantes com que se preocupar, mas o plano de remoção de quase 200 felinos do primeiro bairro da cidade, onde os espanhóis recém-chegados à ilha se estabeleceram, vem causando uma verdadeira comoção num momento em que os próprios porto-riquenhos se sentem ameaçados de expulsão da própria casa.
Os motivos diferem – para as pessoas são os investidores que não param de comprar as propriedades, inflacionando os preços dos imóveis e dos aluguéis –, mas as duas histórias podem acabar tendo o mesmo fim, ou seja, um bairro popular tão transformado que pode perder sua essência, como os mais antigos temem. “Esta região pode acabar se tornando uma casca vazia, mantendo apenas as fachadas, como acontece na Disney, no Epcot ou em Las Vegas”, lastima Rei Segurola, de 72 anos, que já contempla uma possível mudança do bairro.
A briga em relação aos gatos começou há alguns anos, quando o Serviço Nacional de Parques, que administra o Sítio Histórico Nacional de San Juan, área de 30 hectares da península rochosa, que inclui o antigo forte, conhecida como El Morro, decidiu que a população felina tinha se tornado problemática demais.
San Juan foi fundada por colonizadores espanhóis em 1521; os gatos vivem ali pelo menos desde meados do século XX, instalados por um prefeito que queria eliminar os ratos. No ano passado, porém, o órgão disse que seu objetivo era “mitigar as questões problemáticas” e “alinhar a experiência do visitante com o propósito do parque”.
Os moradores ficaram sem saber o que pensar. O que significava aquilo? Que os turistas tinham reclamado? Tinha a ver com os novos investidores ricaços que se instalaram durante a pandemia? Receberam poucas respostas. Choveram mensagens, incluindo algumas a favor do plano. “Sou morador da região e uso o espaço quase diariamente. Os gatos criaram áreas onde acumulam suas necessidades físicas, tornando o ambiente pouco higiênico e ameaçando a saúde pública”, escreveu um em espanhol.
Mas a imensa maioria pede que os gatos fiquem. “Os moradores de San Juan é que devem decidir se estão incomodando ou não. São eles os membros da comunidade com direito à palavra final.”
Em novembro passado, porém, a agência decidiu levar o projeto adiante – e disse que se a Save a Gato, ONG que pega os animais para castrar e volta a soltá-los há quase 20 anos, não conseguisse encontrar um lar para os 170 que vivem na área histórica até junho, contrataria uma empresa para retirá-los e muito provavelmente sacrificá-los.
Em março, a Alley Cat Allies, grupo sem fins lucrativos de Maryland, entrou com uma ação federal em Washington para suspender a iniciativa. A Save a Gato conseguiu resgatar cerca de 50 no prazo dado, cerca dos quais metade foi adotada ou será em breve. O Serviço Nacional de Parques não respondeu às nossas perguntas específicas sobre o que pode acontecer daqui para a frente, mas em 17 de junho deu o primeiro passo para a formalização da contratação de uma companhia terceirizada para retirar os restantes.
Selvagens demais
Segundo a voluntária Danielle Tabler, o problema é que alguns gatos são selvagens demais para serem adotados. “Fica difícil até resgatá-los; tem um que estou tentando pegar há mais de dois anos”, contou ela caminhando ao lado de Irma Podestá, funcionária da Save a Gato há 15 anos, na trilha sob o forte imenso, enchendo os diversos comedores de ração. “Para piorar, muita gente abandona os animais na rua. Em Porto Rico, são muitos. É um círculo vicioso sem fim”, diz a segunda.
De fato, o número de descartes na ilha disparou depois da passagem do Furacão Maria, em 2017, quando muita gente perdeu tudo, inclusive a casa. Entre os desastres naturais e a incerteza econômica, a própria população da capital encolheu 12 por cento entre 2010 e 2020; Porto Rico hoje conta com uma população de 3,2 milhões de habitantes, muitos dos quais penam para se manter diante da alta dos preços, principalmente da moradia.
Ainda caminhando, Podestá recita nomes de amigos que viviam na Cidade Velha, mas foram forçados a se mudar quando o aluguel dobrou e, em alguns casos, até triplicou. “A preocupação é constante porque não sei quando vai ser minha vez.”
Muitas das casas coloniais coloridas do bairro, de pé-direito alto e pátio arejado, já pertenceram a artistas e artesãos, dando com isso um ar boêmio à região. Muitas famílias também moravam ali, algumas ao longo de gerações, mas agora é cada vez mais frequente se transformarem em casas de aluguel para temporada. Na maioria, o que se vê são sinais claros da ocupação sazonal, como os cadeados com segredo usados para armazenar chaves.
Segurola, advogado e professor aposentado, vendeu a casa que tinha em outro bairro em 2015 para se mudar para a Cidade Velha, região pela qual sempre foi apaixonado por causa do charme e do ambiente de cidade pequena. “Agora a impressão é de que a comunidade está se desfazendo, ou seja, é exatamente o contrário do que se procura e do que se tinha por aqui.”
Não só para ele como para muitos outros, a culpa, pelo menos parcial, é de uma legislação fiscal aprovada em 2012, quando a ilha enfrentava um colapso econômico. Hoje conhecida como Lei 60, oferece vantagens sobre ganhos de capital em longo prazo, dividendos, juros e outras taxas aos investidores que comprarem imóveis em Porto Rico se já não forem residentes há pelo menos dez anos.
O governador Pedro R. Pierluisi, derrotado nas eleições primárias em meados de junho, defende a legislação, considerando-a um instrumento importante para atrair capital de fora. Acontece que o influxo de compradores estrangeiros, principalmente durante a pandemia, distorceu o mercado imobiliário local. “Com isso, a inflação alta e a alta da taxa de juros, o porto-riquenho médio já não tem condições nem de alugar, quanto mais comprar”, explica Alonso Ortiz, fundador da El Otro Puerto Rico, ONG que tenta reduzir o desalojamento forçado.
Sua organização descobriu que 71 por cento dos imóveis residenciais na Cidade Velha entre 2018 e 2022 foram adquiridos por beneficiados pela Lei 60 ou empresas associadas a eles. “É muito comum forçarem a saída da família. Aí reformam o imóvel e o transformam em Airbnb ou casa de temporada, fazendo com que o aluguel dispare”, explica ele.
No ano passado, os legisladores locais aprovaram uma lei exigindo que o proprietário do imóvel para curta temporada pague uma taxa anual, mas os críticos afirmam que é preciso uma ação muito mais ampla para contornar o problema.
Margarita Gandía, corretora e moradora antiga da Cidade Velha, conta que tenta enfatizar para os interessados em imóveis para investimento o caráter histórico do bairro e o clima de camaradagem. “Alguns se dispõem a se manter nos padrões, mas outros, não. A região está se tornando uma cidade fantasma. Raramente você encontra um vizinho, alguém que cumprimente, dê bom dia. Já dá para sentir, sim, a diferença. Não só eu como muita gente aqui já reclamou na Prefeitura, pedindo uma coleta de lixo mais eficiente, um controle mais rígido da poluição sonora, mas é como se não existíssemos. Enquanto isso, o governo federal resolve se incomodar com os gatos. Só que eles não são o problema.”
c. 2024 The New York Times Company