Análise: Eis que o ser humano percebeu que a morte existe
Embora a única certeza da vida seja a morte, parece que até a chegada do novo coronavírus muita gente não levava isso a sério, nem o governo
Patricia Lages|Do R7

Baladas regadas a muita bebida, incluindo o consumo de todo tipo de droga e culminando no momento de sentar atrás do volante para voltar para casa. No dia seguinte o que resta, além da ressaca e de outros efeitos colaterais, é a certeza de não ter a mínima ideia de como o carro chegou à garagem.
Some-se a isso uma alimentação desregrada, privação de sono, sexo casual sem proteção, alto nível de estresse e um baixo índice de pessoas que fazem exames preventivos periodicamente. Esse é o quadro que as estatísticas brasileiras pintam: um povo que vive se arriscando em uma espécie de roleta russa cotidiana, mesmo sabendo que nosso sistema de saúde é precário e, em algumas regiões, até mesmo inexistente.
Mas eis que, de repente, os brasileiros se abatem em torno de uma única doença, esquecendo-se de que todas as demais mazelas do nosso país ainda existem e que só o número de mortes causadas por motivos evitáveis, como a violência e a fome, sempre foi extremamente alto. Sem mencionar o fato de que agora muitos temem que não haja leitos suficientes nos hospitais como se isso fosse um problema recente. A verdade é que o sistema de saúde brasileiro nunca deu conta de atender à demanda. Não é de hoje que pessoas morrem todos os dias por falta de estrutura, de equipamentos, de condições minimamente adequadas ou por insuficiência de leitos. Então, o que mudou desta vez?
O que vejo de diferente é uma estranha e repentina pseudopreocupação das nossas autoridades com a vida de pessoas que, até pouco tempo atrás, podiam morrer à vontade. Em contrapartida, vejo uma população que sempre soube que este país é violento, desigual e desestruturado, mas que só agora – talvez alimentada pela mídia que exibe 24 horas por dia números de óbitos ilustrados por gráficos com curvas ascendentes – parece ter acordado para a vida, ou melhor, para o fato de que a morte existe. Isso se reflete no aumento de 150% pela busca de seguros de vida nos últimos dois meses, segundo a plataforma Bidu, e na corrida para a implantação de medidas de biossegurança nas empresas.
Segundo a biomédica e consultora empresarial Luciene Scherer, as organizações estão preocupadas em garantir um ambiente livre de contaminações ou, pelo menos, com menor probabilidade de adoecer seus colaboradores. Ainda mais depois da decisão do STF de classificar a Covid-19 como doença ocupacional. É assim que as nossas autoridades “resolvem” problemas: mandando a conta para alguém pagar.
Agora, além de uma taxação absurda de impostos, o ônus do vírus chinês recai sobre as empresas brasileiras que já estão demitindo em larga escala por conta de uma quarentena que só se amplia e diante da qual ninguém propôs uma estratégia eficaz para a manutenção de emprego e renda. Diante disso, só nos resta esperar para saber o que matará mais: a covid-19, o pânico promovido pela mídia ou a displicência das autoridades brasileiras que resolveram usar a pandemia para garantirem vida longa, não à população, mas a seus próprios mandatos.
Autora
Patricia Lages é autora de 5 best-sellers sobre finanças pessoais e empreendedorismo e do blog www.bolsablindada.com.br. É palestrante internacional e comentarista do JR Dinheiro, no Jornal da Record.