Análise: Quem é contra o saneamento é contra a vida
Segundo relatório da ONU, o consumo de água não tratada ou poluída mata mais do que todas as formas de violência, mesmo assim, a turma do “salvar vidas” disse não ao marco do saneamento
Patricia Lages|Do R7

O documento “Água Doente”, apresentado pelo PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente), em 2019, afirma que “mais pessoas morrem hoje por causa da água poluída e contaminada do que por todas as formas de violência, inclusive as guerras".
O relatório aponta estatísticas alarmantes: todos os anos, cerca de 1,8 milhão de crianças morrem antes de completar cinco anos de idade e mais de 2 milhões de pessoas morrem de diarreia. Tudo isso por uma única causa: falta de água limpa. Outro dado assustador do relatório é que "mais de metade dos leitos de hospital no mundo é ocupada por pessoas com doenças ligadas à água contaminada".
Chega a ser curioso, para dizer o mínimo, ver a comoção global em relação à ocupação de leitos hospitalares por conta da covid-19, como se antes da invenção do vírus chinês a situação da saúde mundial estivesse totalmente sob controle.
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No Brasil, atualmente, 35 milhões de pessoas não têm acesso à água tratada e mais de cem milhões não têm coleta de esgoto. Como um país pode progredir quando praticamente metade da população não tem acesso a serviços básicos que lhe garantam um mínimo de dignidade?
A falta de água limpa mata muito mais do que o coronavírus, mas a turma do “fique em casa e lave as mãos” parece estar mesmo com o cérebro em lockdown. Ficar em que casa? Aquela que não tem água? Lavar as mãos onde? Quando – e se – um caminhão pipa a preço de ouro aparecer?
A bancada do PT no senado, o partido “defensor” das minorias e dos mais pobres, por questões puramente políticas, deu as costas à população quando 100% de seus representantes votaram contra o marco do saneamento. Entre várias alegações sem nexo, levantam a bandeira de que “água não é mercadoria”, achando que, além de faltar água e esgoto, nos falta também memória. Não é preciso ir muito longe para ver que água sempre foi mercadoria – bem cara, por sinal – e que, além de muito lucrativa para alguns, vem servindo de palanque político há décadas.
O edital para contratação de carros pipa publicado em 2019 contempla o gasto de mais de R$ 39 milhões apenas para atender dois estados: Bahia e Sergipe. Como números não mentem, fiz as contas e compartilho abaixo os cálculos.
A despesa de R$ 39.167.652,40, citada no edital, contempla 145.620 “carradas”, ou seja, viagens de caminhão pipa contendo 10 mil litros de água cada. Logo, o custo de cada caminhão é de R$ 268,97. Parece razoável, não é mesmo? Mas é preciso ter referência para poder avaliar o preço. No estado de São Paulo, quem consome até 10 mil litros de água/mês paga a tarifa mínima de R$ 52,36, mais R$ 0,26 de taxa. Metade desse valor (R$ 26,18) se refere ao custo da água em si e a outra metade à tarifa de esgoto. Portanto, a água distribuída por caminhões pipa naquelas localidades custa dez vezes mais do que a água em São Paulo.
Se o gasto em apenas dois estados chega perto dos R$ 40 milhões, imagine o quanto esse serviço é lucrativo considerando todas as cidades do Nordeste que são abastecidas dessa forma. Bastam algumas contas simples para concluir o motivo desse posicionamento radicalmente contra.
Discursos podem ser tão lindos quanto mentirosos, narrativas ideológicas podem parecer que têm sentido, mas, de novo, números não mentem. Quem é contra o direito de 35 milhões de pessoas terem acesso a água limpa é contra a vida. Quem é contra 100 milhões de pessoas terem coleta de esgoto é contra a vida. Diante dos números, quem são os esquerdistas que ainda querem falar em genocídio e crimes contra a humanidade?
Autora
Patricia Lages é autora de 5 best-sellers sobre finanças pessoais e empreendedorismo e do blog Bolsa Blindada. É palestrante internacional e comentarista do JR Dinheiro, no Jornal da Record