Como bancos e outros credores conseguem praticar descontos de 90% sobre dívidas
Grande parte são juros e encargos acumulados, superando muitas vezes o valor original dos débitos

O orçamento de João apertou e ele resolveu fazer um empréstimo pessoal de R$ 2.000 no banco, a uma taxa de 8% ao mês (média praticada no país), para pagar em 48 parcelas fixas de R$ 164, que pareciam caber no bolso.
Uma cláusula contratual determinava que, em caso de inadimplência, João arcaria com multa de 10%, além da atualização da dívida pela taxa de juros mensal. Com pressa de pegar o dinheiro, João aceita os termos e assina sem ler.
Mas João só consegue pagar as primeiras dez parcelas. Depois de atrasar três pagamentos, ele recebe uma carta informando que o saldo atual da dívida é de R$ 8.640, mas que ele pode refinanciar (com mais juros). Sem ter condições de pagar, João não refinancia e seu CPF é negativado.
Meses depois, João é informado por uma empresa de cobrança que sua dívida agora pertence a ela e está em R$ 21.700, mas oferece uma “proposta imperdível”: quitação com 90% de desconto, por apenas R$ 2.170. Incrédulo, João acha que é golpe, então, quer saber como isso é possível. Eis a resposta.
Se João contratou R$ 2.000 e pagou 10 parcelas de R$ 164, significa que o valor original da dívida (sem incidência de juros e encargos), é de R$ 360. Quando o banco emprestou o dinheiro para João, o Banco Central o obrigou a fazer uma provisão contábil, isto é, reservar parte do dinheiro, pois a probabilidade de não quitação, diante de uma taxa de juro tão elevada, era alta.
Essas Provisão para Devedores Duvidosos (PDD) variam conforme o risco de não pagamento. Isso dá ao banco o direito de lançar o calote como prejuízo e reduzir seus impostos.
Dívida: um negócio altamente lucrativo
Mesmo depois de lançar o empréstimo de João como prejuízo, o banco pode vender a dívida para uma empresa de cobrança, numa operação chamada cessão de crédito. O lançamento contábil como prejuízo é apenas uma exigência regulatória para cumprir normas do Banco Central e da Receita Federal. Isso “limpa” o balanço, mas não extingue a dívida: João continua legalmente obrigado a pagar e o dono da dívida mantém o direito de cobrança.
O banco vende a dívida por várias razões: recuperar imediatamente parte do valor, manter o foco no negócio principal (conceder crédito) e reduzir custos.
Mas o que acontece com a dívida de João? Lembremos que o valor original era de apenas R$ 360. Os R$ 8.640 informados após 90 dias de atraso representavam o saldo devedor (valor original + juros + encargos + multa). Ciente de que perdeu de fato apenas R$ 360, mas que o saldo devedor já ultrapassava R$ 8 mil (e continuaria crescendo), o banco vende a dívida por R$ 400 para a Empresa de Cobrança X.
A empresa X se torna a nova credora e começa a cobrar João pelo saldo atualizado, então em R$ 21.700. Ao oferecer 90% de desconto, convence João a parcelar em dez vezes de R$ 217, “sem juros”. João aceita, paga a primeira parcela e, após alguns dias, tem seu CPF “limpo” novamente.
O banco deduziu impostos, a empresa de cobrança poderá lucrar quase 450% (mesmo que João pague apenas três ou quatro parcelas, já terá retorno positivo), e João, achando-se “sortudo”, além de ficado com o “nome sujo” por meses, acabará pagando quase o dobro do dinheiro que recebeu.
Não é mágica e nem ilegalidade. Trata-se de conhecer as regras do jogo tão bem a ponto de ganhar muito, parecendo que perdeu, enquanto o outro perdeu muito, achando que fez bom negócio.