Dívida vendida para empresa de cobrança que desrespeita o consumidor: o que fazer?
Transferência de valores não é ilegal, mas direitos do consumidor nem sempre são cumpridos. Saiba quais são e proteja-se contra golpes
Você sabe que tem uma dívida com o “Banco A” e com o “Cartão B”, mas em vez de ser cobrado pelos credores originais, passa a receber ligações insistentes de assessorias de cobrança das quais nunca ouviu falar, mas que garantem que são as novas “donas” das suas dívidas. Será que isso é correto? A resposta é sim e não.
Sim, a transferência de valores em aberto, juridicamente chamada de cessão de crédito, é uma prática legal e muitos credores a utilizam por diversos motivos. Um deles é que cobrar o devedor custa caro e, a depender do caso, o gasto pode superar a dívida. Por isso, ceder o crédito, ou seja, vender a dívida para recuperadoras de crédito acaba saindo mais barato.
Não, vender a dívida sem informar o devedor não é um procedimento correto, segundo o artigo 290 do Código Civil: “A cessão do crédito não tem eficácia em relação ao devedor, senão quando a este notificada; mas por notificado se tem o devedor que, em escrito público ou particular, se declarou ciente da cessão feita”.
O objetivo é deixar o devedor ciente de quem é seu novo credor, isto é, a quem ele deverá pagar a dívida. Mas como a falta dessa notificação não torna a dívida inexigível, ou seja, não exime o devedor de pagá-la, muitas vezes o credor não cumpre com esse dever. Nesse caso, o que fazer?
O primeiro passo ao ser cobrado por uma assessoria sem antes ter sido notificado é entrar em contato com o credor original e verificar se realmente a dívida foi vendida e para quem. Essa etapa é imprescindível, uma vez que o número de golpes financeiros, incluindo falsas cobranças, tem crescido exponencialmente pelo país.
Direitos e deveres
No Brasil, dever não é crime (a não ser em caso de pensão alimentícia), mas cobrar uma dívida sem respeitar as leis é. Segundo o artigo 71 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), configura crime: “Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça, coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor, injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou lazer”.
A pena prevista para quem descumpre as normas é de detenção de três meses a um ano e multa.
Também há leis estaduais que limitam os horários das cobranças por telefone. Por exemplo: nos estados de São Paulo, Santa Catarina e Alagoas, as ligações podem ser feitas entre 8h e 20h, de segunda a sexta-feira, e entre 8h e 14h aos sábados, não sendo permitidas chamadas aos domingos e feriados. No Rio de Janeiro, o horário é das 9h às 19h, no Paraná das 8h às 18h e, em Minas Gerais, das 9h às 18h, apenas em dias úteis.
Portanto, se por um lado o credor pode cobrar, por outro, o devedor tem o direito de que as cobranças não interfiram em seu trabalho, que sejam livres de ameaças e que não causem constrangimento, o que comumente acontece, por exemplo, quando o número de ligações diárias é abusivo, fazendo com que, tanto colegas de trabalho quanto familiares, percebam a situação.
Cícera Oliveira, que teve uma dívida de cartão de loja vendida para uma recuperadora de crédito, relata seu caso: “É uma tortura. Eles não param de ligar ameaçando que vão cancelar meu CPF, que um oficial de justiça vai bater na minha porta a qualquer momento. Já falei mil vezes que não tenho como pagar o valor que eles querem. Não tenho mais paz no trabalho e nem dentro de casa.”
Diego Lopes tem mais de uma dívida e recebe ligações de várias assessorias durante todo o dia: “Eles fazem isso que é para infernizar, uma ligação atrás da outra. Teve dias que recebi 47 ligações. Se o cliente percebe que é cobrança, não fecha negócio comigo, fico sem moral. Não dá para trabalhar desse jeito. Já pedi educadamente para parar, já discuti, já xinguei, mas não adiantou nada.”
Em casos como o de Cícera e Diego é preciso informar a própria assessoria de cobrança sobre o descumprimento das normas. Bruno Parreira, que recebia ligações incessantes durante todo expediente, enviou um e-mail para a recuperadora de crédito relatando que chegou a atender mais de 60 ligações em um único dia. No mesmo documento, informou seus horários de trabalho e citou o artigo 71 do Código de Defesa do Consumidor, que proíbe a importunação naquele período. “Depois que mandei o e-mail, nunca mais me ligaram no horário de trabalho, nem acredito”, afirma.
Outras práticas abusivas são as ameaças e o uso de informações falsas, como no caso de Cícera: “Eles dizem que vão entrar com uma cobrança extrajudicial para o oficial de justiça entrar na minha casa e levar o que tiver, televisão, computador, o que for, até chegar no valor da dívida. Moro com meus pais, as coisas nem são minhas. Não sei o que fazer.”
Cuidado com informações falsas
Inicialmente, é preciso entender que cobrança extrajudicial nada mais é do que uma tentativa de receber a dívida de forma amigável, ou seja, fora do âmbito jurídico. Já a penhora de bens é uma medida extrema, que só acontece após o esgotamento de todas as formas amigáveis de cobrança, e somente quando o credor entra com uma ação na Justiça.
Embora algumas assessorias usem o argumento citado por Cícera, a penhora não se aplica a móveis e pertences domésticos, a bens usados para o trabalho ou o único imóvel próprio onde o devedor mora, entre outras impenhorabilidades.
Há ainda outros tipos de informações falsas, como dados e valores incorretos sobre as dívidas em si. Em alguns casos, as assessorias informam, por meio de seus atendentes, períodos e valores totalmente diferentes dos reais.
Fátima Souza conta que seu marido, Paulo, se endividou depois de perder o emprego, passando a receber ligações constantemente. Em uma delas, Paulo foi informado de que sua dívida estava em aberto por 340 dias e que os juros haviam elevado o valor para além dos R$ 18 mil.
“Ele ficou desesperado e só não aceitou um acordo na hora porque não tinha como pagar as parcelas. Só que quando fizemos as contas com a cabeça fria, vimos que 340 dias é quase um ano, mas tinha só quatro meses que ele estava devendo. Não tinha como aquilo ser verdade. Ficou claro que o atendente mentiu”, diz Fátima.
A verdade é que os atendentes passam as informações que os sistemas das empresas fornecem, sem terem ciência de que podem ser enganosas. Nesses casos, também é importante documentar a ocorrência enviando um e-mail para a própria assessoria e, caso as informações falsas continuem, o consumidor deve produzir provas (como gravar as conversas) e fazer uma reclamação junto aos órgãos de defesa do consumidor.
Programe-se para quitar os débitos e regularizar a situação
Antes de aceitar qualquer negociação oferecida pelo credor, o devedor precisa certificar-se de que o valor cobrado está correto. Para isso, é direito do consumidor solicitar duas informações junto ao credor:
1) Valor principal ou valor original da dívida – trata-se do montante inicial, antes de serem acrescidos juros;
2) Memória de cálculo ou cálculo evolutivo da dívida – trata-se do demonstrativo os cálculos que comprovem o valor da dívida atualizada, acrescido dos juros, mencionando a taxa utilizada e o período em que a dívida está em aberto.
Essa medida é importante, pois, em muitos casos, o devedor perde o controle do próprio orçamento ao perder a capacidade de pagamento. Sendo assim, ele pode aceitar a negociação de uma dívida a partir de um valor irreal, geralmente bem mais alto do que deve de fato. Preferencialmente, a solicitação deve ser feita por escrito para que tudo fique documentado. Caso o credor se negue a enviar as informações, o devedor deve reclamar seus direitos nos órgãos competentes.
Uma vez que o consumidor obtenha as informações e tenha certeza da situação real de sua dívida, é imprescindível organizar o orçamento e fazer uma proposta de pagamento de acordo com o que possa efetivamente cumprir. Dessa forma, ao pagar a primeira parcela, o credor já deverá dar baixa na negativação do CPF do consumidor nas empresas de proteção ao crédito.
Mas atenção: em caso de nova inadimplência, o credor poderá negativar novamente o CPF do consumidor, tornando a situação mais complicada do que antes. Isso porque os acordos configuram uma nova negociação e, ao serem incluídas no cadastro de inadimplentes, podem manter o CPF do consumidor negativado por até cinco anos.
Faça as contas, negocie descontos, organize o orçamento e aperte o cinto até honrar todas as parcelas. Considere a má experiência como forma de aprendizado e invista em educação financeira para viver com mais tranquilidade.
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