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Patricia Lages

Nas redes sociais, perfis falsos é que são os verdadeiros

Perfis “fake” não servem para alguém se passar por outra pessoa, mas sim, para externar quem se é de verdade

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Miley Cyrus celebra sucesso de ‘Flowers’: “Você é suficiente e tudo que vier a mais é um extra”
Miley Cyrus celebra sucesso de ‘Flowers’: “Você é suficiente e tudo que vier a mais é um extra”

Depois de terminar mais um relacionamento, Mariana posta nas redes sociais várias sequências de selfies ao som de “Flowers”, da Miley Cyrus. Para completar, ela coloca na legenda o refrão da música em inglês e português:

  • I can buy myself flowers – Posso comprar flores para mim
  • Write my name in the sand – Escrever meu nome na areia
  • Talk to myself for hours – Falar comigo mesma por horas
  • Say things you don’t understand – Dizer coisas que você não entende
  • I can take myself dancing – Posso me levar para dançar
  • And I can hold my own hand – E segurar minha própria mão
  • Yeah, I can love me better than you can – Sim, posso me amar melhor do que você

A melhor amiga comenta: “Bora amar o próximo, migaaaa!”

A mãe posta o conselho que repete desde que Mariana era criança: “Filha, foco na carreira, compra seu apê e bota um carrão na garagem. Seja independente.”


Mas o comentário mais curtido é o que diz: “Mulher não precisa de macho pra ser feliz!”

Mariana curte tudo e responde coisas como: “tô plena”, “de volta na pista”, “livramento”. Mas quando chega em casa, a frustração de estar sozinha – mais uma vez – cai como uma bomba. Ao contrário do refrão da música, ela queria ouvir o interfone avisando que chegou um buquê de flores do (agora) ex. Se viesse acompanhado de um cartão escrito “te quero de volta” ela seria a pessoa mais feliz do mundo. Aquele peso seria arrancado de seu peito e ela voltaria na hora, sem pestanejar.


Mas tudo não passa de um pensamento. É apenas a sua mente lhe pregando uma peça e, na verdade, ela se pega falando sozinha. Não é uma daquelas conversas legais que duram horas e ninguém vê o tempo passar, é nada mais do que ela perguntando a si mesma que desculpa vai dar para não ir à praia com as amigas, afinal, escrever o próprio nome na areia não tem a menor graça.

E como ela vai declinar o convite para a balada de amanhã já que cansou de fingir que ama dançar sozinha? Da última vez foi muito difícil disfarçar o choro ao ver casaizinhos de mãos dadas. Ela precisa arrumar uma desculpa urgente porque correr o risco de perder seu título de empoderada está fora de cogitação!


A verdade é que Mariana está péssima. Definitivamente ela não é o tipo de pessoa autossuficiente que se sente bem consigo mesma, se é que existe alguém que seja assim. Pior: ela não pode contar isso para ninguém. O que suas amigas diriam? Que decepção causaria à mãe? Seu coração e mente giram num turbilhão de pensamentos e emoções e, antes que o choro acabe com a maquiagem e o cabelo vire um coque amarrotado, ela precisa correr para postar mais um “photo dump” nas redes.

A primeira imagem é a selfie clássica segurando uma garrafa de vinho com a legenda: “iniciando os trabalhos”. Na segunda, ela aparece sorridente, esparramada na cama queen size e o texto: “amando meu espaço, amando minha liberdade!” A foto seguinte precisa de uma “vibe” diferente, então, ela enquadra a TV de fundo com o logo de uma plataforma de streaming, e mostra em primeiro plano seus pés cruzados e calçados com meias velhas de lã: “assistir o que eu quiser, vestindo o que eu quiser. O controle remoto é todo meu, bebê!”

Postagem feita, ela guarda a garrafa de vinho porque nem gosta de beber. Desliga a TV porque assistir filme romântico sozinha a fará sentir-se ainda mais carente. Vai dormir na sala porque a cama é grande demais. Agarrada ao celular, ela lê os mesmos comentários das mesmas amigas e responde as mesmas coisas, ficando cada vez mais frustrada, deprimida e sentindo raiva de qualquer um que pareça mais feliz do que ela. Mariana sente que precisa dar vazão àquele misto de sentimentos e conclui: está na hora de trocar de conta e dar vida a Andrezza, a protagonista do perfil falso que ela criou para poder dizer tudo o que não tem coragem de falar.

Andrezza persegue os passos de todos os ex que Mariana já teve, xinga suas próprias “amigas” de falsas, invejosas, mal-amadas, barangas. Faz piadas politicamente incorretas e altamente preconceituosas. Andrezza despeja as frustrações de Mariana em forma de ofensas gratuitas e, por alguns segundos, traz um certo alívio às dores de sua criadora, fazendo-a sentir-se um pouco melhor. Mas o efeito logo passa e Mariana precisa voltar a ser a mulher empoderada que nem sequer existe. O perfil falso não é para que ela se passe por outra pessoa, mas apenas para que possa ser quem é sem correr o risco de ser pega.

Assim como nesta crônica, quantas Marianas reais têm se transformado em personagens fictícias, criando Andrezzas para darem vida à sua real essência? Essa grande confusão deixa claro que, na sociedade do espetáculo, vale mais falsear a verdade do que encarar e transformar a realidade. Buscando facilidades, muitos têm reduzido suas vidas à difícil tarefa diária de encenar uma peça fictícia para uma plateia falsa que apenas finge acreditar no que vê. Por sua vez, “fãs fakes” fazem questão de aplaudir e incentivar a fantasia dos outros para, igualmente, tentarem fugir da própria realidade.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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