Tralalero tralalá e a nova onda das animações ‘brain rot’ promovem a podridão cerebral
Excesso de estímulos e fuga da realidade: não é à toa que desatenção e procrastinação estão em alta

Uma música sem sentido toca ao fundo enquanto surge na tela o primeiro personagem do universo “italian brain rot”: um tubarão criado por inteligência artificial chamado Tralalero Tralalá. Os vídeos de curtíssima duração parecem inofensivos, mas sequestram a atenção com edições explosivas, sons exagerados e repetições que causam efeitos praticamente hipnóticos.
A conta do TikTok associada à criação do personagem foi desativada, mas gerou bilhões de visualizações. Sim, bilhões. Além de render uma série de outros personagens em vídeos aparentemente comuns, mas altamente viciantes.
A nova onda está se estabelecendo rapidamente como um certo padrão de entretenimento digital. Mas especialistas alertam que crianças podem ter prejuízos cognitivos – dificuldade de aprendizado, por exemplo – e, como se fosse pouco, uma consequência ainda mais assustadora: a reprogramação da forma como pensamos, sentimos e nos relacionamos com o mundo.
Rolar a tela do celular faz a vida parecer mais leve, engraçada e satisfatória. É o efeito da descarga de dopamina, que age diretamente no sistema de recompensa do cérebro, causando sensação de felicidade e prazer imediato. Mas esse neurotransmissor desempenha dois papéis: o de trazer felicidade e o de levá-la embora.
A médica psiquiatra Luciana Scomparini explica que o uso excessivo de redes sociais pode aumentar artificialmente os níveis de dopamina no cérebro, o que está associado a comportamentos impulsivos, compulsivos e agressivos.
“Altos níveis desse neurotransmissor podem intensificar a busca por recompensas, levando à perda de controle sobre ações e decisões. A dopamina também desempenha um papel central no desenvolvimento de vícios”, afirma. E assim, o cérebro submetido a essa montanha-russa de estímulos chega a um tipo de exaustão que recebeu o nome de “brain rot”.
Em 2024, o termo ganhou fama ao ser eleito como a expressão do ano pelo Dicionário da Universidade Britânica de Oxford e, em tradução literal, significa podridão cerebral. O conceito reflete um fenômeno real e preocupante: um esgotamento mental causado pelo consumo excessivo de conteúdos digitais superficiais e nada desafiadores.
O fato de estarmos passando por um momento histórico no qual grande parte das pessoas dorme mal, não consegue manter o foco, se sente exausta o tempo todo e se acostumou a procrastinar tarefas não é um mero acaso, mas sim, sintomas relacionados ao rolar do feed por horas e horas.
Segundo Kyra Bobinet, médica especialista em mudança comportamental e CEO da Fresh Tri – empresa de tecnologia com foco em neurociência –, o consumo compulsivo de conteúdo superficial ativa áreas do cérebro ligadas à fuga e à procrastinação.
Já o Dr. Don Grant, psicólogo, PhD, especializado em mídia e tecnologia, chama a atenção para impactos como queda de memória, perda de foco, distúrbios do sono e declínio de criatividade. Ou seja, quanto mais uma pessoa se enche do vazio digital, mais se esvazia da capacidade de lidar com qualquer coisa que exija atenção, esforço mental e reflexão.
É claro que a diversão faz parte da vida e a lógica pode ser deixada de lado nesses momentos. Mas quando um tempo cada vez maior é preenchido por conteúdos vazios que nem sequer lembramos de ter visto, o entretenimento vira entorpecimento.
O resultado é um cérebro que passa a rejeitar qualquer estímulo que não seja imediato, divertido e fácil. E por ser algo relativamente novo, ainda não é possível ter a noção exata de todos os prejuízos que essas alterações cerebrais podem causar.
Reverter o quadro é uma questão de resistência
Se o que causa todos esses problemas é o excesso de estímulo sem profundidade e a overdose de “felicidade” imediata, a solução é o retorno ao significado e à prática do tédio.
Não é questão de eliminar a distração ou demonizar as redes sociais, mas sim, de recuperar o equilíbrio entre a descontração e a reflexão, a satisfação e a frustração.
As mudanças de atitude necessárias para um cérebro saudável exigem consciência e pequenos atos diários de resistência. É preciso que esse exercício constante seja levado a sério, pois os resultados que alcançamos vêm de ações movidas pelo que pensamos, porém, uma mente distraída, confusa, vazia e exausta não é capaz de raciocinar de forma coerente.
Algumas das estratégias recomendadas por especialistas são: estabelecer limites de tempo para o uso de telas, praticar o tédio saudável, o ócio criativo, criar o hábito da leitura de livros, fazer atividade física e buscar conteúdos desafiadores. E lembre-se sempre que o seu cérebro precisa de todo tipo de alimento, não só de sobremesa.