Caso de modelo morto confirma que show deve continuar. Mas pode?
O falecimento de Tales Cotta, que passou mal durante um desfile no SPFW, levantou dilema. Decisão de não parar o evento gerou críticas
Blog da DB|Do R7 e Deborah Bresser
"Criamos uma indústria da moda onde as pessoas morrem e o show continua", diz um dos protestos que circularam pelas redes sociais neste fim de semana, após a notícia de que o modelo Tales Soares, conhecido como Tales Cotta, veio a falecer após ter um mal súbito durante o desfile da Ocksa, estreante SPFW, no sábado (27).
SPFW: Modelo morre após mal-súbito em desfile de grife estreante
Antes mesmo de a notícia da morte ter sido anunciada, alguns profissionais da área já se manifestavam nas redes sociais, chocados com o fato de o desfile ter sido reiniciado, como se nada se tivesse acontecido. Um deles foi o jornalista Eduardo Viveiros. "Eu estou dentro do SPFW há quase vinte anos. Já vi muita coisa, várias fatalidades micro, brigas de ego e de estruturas dissonantes. Mas passar em cima de alguém - quase que literalmente - é minha primeira vez. O menino Tales teve um seilaoque no meio do desfile, caindo desacordado no chão da passarela. Foi socorrido, amparado, tudo do jeito certo. Mas claramente, nada estava bem. E não existe fingir que estava. Não existe continuar um desfile como se nada fora. Muito menos RECOMEÇAR", escreveu.
Na análise de Viveiros, não se trata de atacar o trabalho de estilista, marca, stylist, costureiros, organização, qualquer um. "Mas passar em cima de alguém assim é ceder ao pior lado de um sistema que já é cruel a muita gente. É como tirar uma peça para a engrenagem continuar rolando. E não pode ser assim. Não deveria poder ser assim. Tá na hora de repensar MUITA coisa. THE SHOW MUST GO ON é o c******", avaliou.
SPFW presta esclarecimentos após morte de modelo
Quem estava na sala relatou que aquilo que a princípio poderia sugerir uma "performance" logo se mostrou uma tragédia. Segundo muitos, o corpo de Tales apresentava claros sinais de colapso, e não havia clima para continuar. Mas a apresentação recomeçou, as portas continuaram fechadas e a música voltou assim que Tales foi socorrido.
A notícia da morte, confirmada pela organização por volta das 19h, gerou mais indignação. A designer Juliana Ali, que cobriu a área de moda por muitos anos, se disse orgulhosa por não fazer mais parte "desse universo excludente, frio, datado, movido por aparência, desumano e elitista que é o mundo da moda".
"É um microuniverso que não soube evoluir com o resto do planeta, fechado em uma bolha tosca e vazia, sem noção alguma de nada que a cerca, um recorte de realidade que permanece igualzinho era em 1990, com suas modelos esquálidas e famintas, maltratadas pelo mercado, meros cabides mal pagos, sofrendo para se encaixar em um padrão estético que há muito tempo não faz nenhum sentido. A moda está parada no tempo há muito tempo, absolutamente estática, vergonhosamente orgulhosa de sei lá o que, ainda barrando pessoas na porta porque são 'feias demais' ou 'pobres demais', mas não percebeu que a fila da porta de entrada, hoje em dia, não tem mais quase ninguém", escreveu Juliana em seu perfil no Facebook.
Morte de modelo: “Todos decidiram manter os desfiles”, diz SPFW
Diante das críticas, a organização do SPFW soltou um comunicado, no qual informa ter se reunido com as marcas, diretores de desfiles, stylists e modelos próximos de Tales, que tinham desfiles na programação, e foi dada a opção de cancelar os mesmos. "Mesmo abalados, decidiram manter os desfiles. Todos os envolvidos foram acompanhados de perto", informou a Luminosidade, responsável pelo evento.
Rosângela Espinossi, do Elas no Tapete Vermelho, site parceiro do R7, viu Tales cair na sua frente. Agora, dois dias depois, propõe a reflexão. "Sobre cancelar ou não? Sinceramente, fico sem poder dar uma resposta exata. Estou em cima do muro? Pode ser que sim. Um dos desfiles posteriores ao anúncio da morte foi o do Projeto Ponto Firme, capitaneado pelo estilista Gustavo Silvestre, na penitenciária Desembargador Adriano Marrey, em Guarulhos. Foi um trabalho de meses, dos detentos tecendo as peças. Foi um desfile lindo e engajado. Num momento em que é necessário falar de coisas boas neste Brasil Seria justo não desfilar? Seria justo não mostrar todo aquele lindo trabalho?"
Na cobertura mais triste da vida não há espaço para leviandade
Não é uma decisão simples. Mas fica um gosto de fel no céu da boca saber que esse mecanismo moedor de almas não é capaz de parar, nem diante da morte. O cantor Rico Dalasam, no desfile da Cavalera, que encerrou o evento, fazia parte do casting da marca e resolveu se manifestar: “Não era pra ninguém estar aqui. O garoto acabou de morrer e vocês estão aqui como se a vida não valesse nada. Não era pra ninguém estar aqui”, protestou, estando lá... Ele não deixou de subir na passarela, ainda que tenha usado o espaço de palanque.
“Estava assistindo ao desfile ao vivo”, diz mãe de modelo
A palavra final sobre essa polêmica de parar ou não o evento, dita por Heloisa Tales, mãe do modelo, é um soco no estômago: “Cancelar iria trazer ele de volta? Nem ele gostaria disso. Era muito profissional.”
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