Corajoso, teatro brasileiro resistiu à ditadura militar
Golpe militar perseguiu artistas que contestavam o regime nos palcos

Atores espancados por fazerem uma peça. Uma atriz sequestrada na saída de uma apresentação no centro paulistano. Textos dramatúrgicos dilacerados pela burrice da censura. Cenas como estas eram comuns no Brasil durante a ditadura militar que vigorou no País por 21 anos, entre 1964 e 1985. O golpe militar, deflagrado no dia 31 de março de 1964, completa agora 50 anos.
Apesar de perseguido pelo regime, o teatro cumpriu papel fundamental de resistência cultural à repressão e à falta de liberdade. Foi justamente na década de 1960 que o Brasil viu florescer um teatro compromissado com temas nacionais e que contestava a cada momento a ordem vigente.
Grupos marcaram época, como os paulistanos Teatro de Arena, com textos emblemáticos de Augusto Boal (1931-2009), que teve de partir para o exílio em 1969, e o Teatro Oficina de José Celso Martinez Corrêa, no exílio na década de 1970, e que segue atividade com mais de 50 anos de história, tornaram-se ícones da resistência artística. No Rio, o Grupo Opinião, de João das Neves, também contou e cantou a opressão.
Agressão e sequestro
A reação conservadora era violenta e intimidadora. Em 1968, ano que culminaria com o Ato Institucional nº 5, que cassou as liberdades civis, foi também de estopim nos palcos.
Em 8 de outubro de 1968, a atriz Norma Bengell, que morreu em 2013, foi sequestrada por policiais na porta do Teatro de Arena, no centro de São Paulo, quando encenava a peça Cordélia Brasil, sob direção de Emílio Di Biasi. Foi torturada e levada para o Rio, onde foi solta depois.
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No mesmo 1968, no dia 18 de julho, atores do Teatro Oficina foram espancados por jovens ligados ao Comando de Caça aos Comunistas, enquanto faziam a peça Roda Viva, escrita por Chico Buarque.
José Celso Martinez Corrêa, diretor do grupo que teve de se exilar na Europa na década de 1970, lembra que isso não acovardou os integrantes da trupe.
— Depois veio o AI-5. Estreamos com o quê? Nada mais nada menos que Galileu Galilei, exatamente no dia 13 de dezembro de 1968, data da implantação da fase mais sangrenta da ditadura militar. Foi através desta peça que começamos a entender que a cultura cria cosmos – não grupos. Cria maneiras de ler, interpretar, viver a vida no mundo.
O líder do Oficina reitera que, nos anos 1960, o Brasil tinha companhias importantes "como o Teatro de Arena, o TBC, O Teatro Maria Della Costa, o Teatro Sérgio Cardoso e Nydia Licia, a Companhia Tônia Celi Autran, o Grupo Decisão, dirigido por Antônio Abujamra". E lamenta que quase todas tenham sucumbido.
— Das Companhias permanentes que eram como repúblicas anárquicas auto geridas, com repertório e estilo próprio independente, cosmos que brilharam nos anos 60, só restou o Oficina, que em sua re-existência tornou-se a Associacão Teat(r)o Oficina Uzyna Uzona e fez florir o que plantou: o que surgiu nos anos 60.
Nesta terça (1º), às 21h30, no Oficina (r. Jaceguai, 520, São Paulo), o Oficina faz sessão inédita e gratuita de Walmor Y Cacilda 64 – O Robogolpe. O texto de Zé Celso, recriado por seu grupo, apresenta da relação de artistas do teatro com a ditadura. A sessão faz parte do projeto Vigília pela Liberdade, do grupo Os Satyros.
Teatro é contestador
Maíra Carvalho de Moraes, historiadora formada pela USP (Universidade de São Paulo), afirma que "teatro é uma das formas de expressão artísticas mais contestadoras".
— Justamente por estar de corpo presente, em dialética com o público, imediatamente, o teatro tornou-se absolutamente subversiva durante a ditadura.
A historiadora lembra que "a classe teatral foi uma das mais atuantes nesse período político do Brasil, não só nas produções teatrais, como na organização política" e deu "lição filosófica e prática".
— Basta nos lembramos de Cacilda Becker e Walmor Chagas. Ou mesmo, das peças censuradas como Roda Viva. O teatro brasileiro durante a ditadura descobriu a si mesmo, o povo brasileiro e os seus algozes. Foi o momento de transcendência dessa classe. Difícil dizer como o Brasil foi rico durante tempos tão pobres.
Moraes recorda que foi no período da ditadura que o teatro brasileiro redescobriu Oswald de Andrade, em O Rei da Vela, "com sua subversão total". E ainda "descobriu a rebeldia de Nelson Rodrigues" na "releitura de seus clássicos que exaltava a pobreza moral e ética da classe que bancou o golpe civil-militar".
—Os textos de Nelson Rodrigues debochavam da burrice dessa classe média, de seu afã pelos desejos mais primitivos: sexo e sangue.
Luta armada ou desbunde
E o exemplo da geração teatral que resistiu aos militares chega até os dias de hoje. Ygor Fiori, ator e produtor que já passou pelo CPT (Centro de Pesquisa Teatral) de Antunes Filho, fundou a Cia. Paulistana de Teatro e hoje também atua no Núcleo 184, que acaba de fazer uma série de espetáculos sobre o golpe, cita Zé Celso ao dizer que "na época da ditadura ou se ia para luta armada ou para o desbunde". Desbunde era fazer da própria vida uma atitude contestadora do sistema.
— O teatro teve uma importância enorme na fermentação de ideias anti repressivas, pois sua resistência subliminar fomentava a criação de novas mentes, novas frentes de cabeças pensantes.
O artista lembra como fundamentais a "malandragem e criatividade" que os artistas tinham de ter diante dos censores. E afirma que o teatro, mesmo em tempos democráticos, segue como "arma poderosa de crítica".
— O teatro é uma arte de resistência por natureza, é criador de pensamento crítico antes de tudo, mesmo às vezes disfarçado de mero entretenimento.
Para Fiori a ditadura instaurada 50 anos atrás deixou marcas no teatro até os dias atuais.
— O cortou na própria carne, se sacrificou, foi torturado, dilacerado, humilhado e isso obviamente deixou marcas para sempre. O teatro resistiu e essa é uma marca, e em qualquer espetáculo que se propõe a expressar uma ideia livre deve isto ao teatro que resistiu à repressão.
Ele insiste que a memória sobre os tempos de ditadura deve ser propagada.
— Ainda hoje muitos coletivos teatrais fazem questão em seu trabalho de discutir e pensar sobre este período tenebroso de nossa história em que o teatro. O teatro, como sempre, é a grande voz que não cansa de alertar sobre o perigo de retrocessos. O teatro é utópico e por isso ele não cansa de lutar pela liberdade plena.