O que o caso de MC Doguinha diz sobre sexualização infantil
Funkeiro de 12 anos caiu na mira do Ministério Público com hit
Pop|Helder Maldonado, do R7

Em 2015, artistas mirins de funk foram investigados pelo Ministério Público de São Paulo por causa do conteúdo das letras de suas músicas. Melody, Pikachu, Brinquedo e Pedrinho viraram alvos de um processo que incluía também avaliações sobre como eram gerenciadas as carreiras desses menores de idade.
Agora, novamente isso acontece, mas no Rio de Janeiro. E o motivo continua o mesmo. MC Doguinha teve o clipe de Vem e Brota Aqui Na Baseretirado do YouTube. Com quase 20 milhões de visualizações, o vídeo é um dos maiores sucessos do funk em 2017. Mas as imagens e letras causaram controvérsia.
No vídeo, o jovem de 12 anos contracena com mulheres de biquíni e ostenta carrões e uma mansão enquanto canta versos cheios de conteúdo adulto.
Em sua defesa, o artista disse nas redes sociais que essa é a única saída para driblar a miséria da periferia.
Mas especialistas em desenvolvimento infantil acreditam que essa visão é reducionista.
Para a psicóloga Elaine Mardegan, especialista em trauma e estresse, um jovem nessa idade não estaria apto para lidar com a adultização resultante da própria carreira e a sexualização do conteúdo que canta.
— Adultizar é expor uma criança a comportamentos adultos que roubam sua inocência e infância. Adultizar é esperar e incentivar uma criança a se comportar como um adulto. Trata-se de um verdadeiro abuso, pois, não é simplesmente ver a criança como um adulto em miniatura, mas tratá-la como tal.
A adultização e erotização no funk não se resume a Doguinha. O termo “novinha”, usado até mesmo por MCs maiores de idade, já foi bastante questionado e problematizado desde que virou gíria da moda. Inclusive, a palavra está entre as mais buscadas nas principais plataformas de vídeos eróticos no Brasil.
Para a assistente social Samia Souza Lago, a popularização dessas tendências normalizam comportamentos que podem ser problemáticos a longo prazo.
— Esse é o maior perigo: quando os adultos começam a transpor a fronteira do que é normal para uma criança. Muitos acham que, por elas terem informações a respeito de determinadas coisas, já estão aptas a vivê-las e, consequentemente, lidarem com as consequências dessas coisas. O termo "novinha", por exemplo, é carregado de sexualidade, e fruto dessa crença equivocada.
Problema vai além do funk
Essa polêmica gera debates sempre que um artista mirim de funk volta a se destacar. Porém, a adultização está presente em outros segmentos da indústria cultural e é habitual principalmente no cinema e no mundo da moda.
Recentemente, a atriz Millie Bobby Brown, que interpreta a personagem Eleven, em Stranger Things, esteve envolvida em um boato no qual ela teria sido escolhida como uma das mulheres mais sexy do mundo. A notícia gerou revolta, já que trata-se de uma menina de 13 anos.

Mesmo não sendo verdade, o fato influenciou discussões sobre a sexualização dela e dos outros integrantes do elenco da série, todos menores de idade. Fotos em roupas e poses adultas, questionamentos sobre a orientação sexual dos jovens em tablóides e obsessão dos fãs para que casais sejam formados entre eles provam que o funk está longe de ser o único agente que força a adultização de crianças e que o Brasil não é o único país onde isso é um problema.
Essa tendência, no entanto, não é nova. O cinema americano tem um histórico de filmes que fetichiza principalmente mulheres adolescentes desde a época de Shirley Temple.
Além disso, com a recente onda de denúncias de abuso sexual contra atores, diretores e produtores de Hollywood, ficou claro que em uma relevante parcela desses casos, o alvo é adolescente ou até mesmo criança.
Corey Haim, Corey Feldman e Drew Barrymore são casos clássicos de astros mirins que enfrentaram vícios e abusos de gente mais velha e poderosa quando ainda eram menores de idade.
Segundo a doula e desenvolvedora de jogos infantis Ly Pucca, ter acesso e contato com ambientes hiperssexualizados em idades não recomendadas é um prato cheio para se tornar uma vítima em potencial. Mãe de três, ela conta que entendeu isso sendo ela mesmo vítima de abusos dentro da própria casa quando ainda era criança.
— Aos 4 anos de idade comecei a ser abusada sexualmente por um primo, e a invisibilidade era tanta que nenhum adulto reparou. Foram 5 anos sendo violentada dentro de minha própria casa, e eu pensava que aquilo era ok, pois eu via na TV, ouvia as piadas. Quando ia comentar com outras crianças, virava piadinha, e elas mesmas não sabiam o que significava. Como nenhum adulto nunca me ensinou a diferença do toque nocivo e do toque de cuidado, eu não sabia direito o que estava acontecendo.
Sociedade do hiperconsumo
A publicidade e tendências atuais como "empreendedorismo de palco" também se tornam um problema silencioso no processo de adultização de crianças.
Palestrante motivacionais mirins, YouTubers pré-adolescentes que comentam política e jovens que consomem e produzem conteúdo relacionado à auto-ajuda podem não estar expostos à sexualização, mas estão antecipando uma fase na vida que não estão preparados para viver, segundo os especialistas.

No Brasil, o principal exemplo disso é Davi Braga, palestrante motivacional da área de empreendedorismo que faz sucesso desde os 12 anos e teve participação no programa Shark Tank. Aos 16, ele diz faturar R$ 600 mil por ano com um aplicativo de venda de material escolar. Nas redes sociais, dá dicas de como investir em negócios e é seguido também por pessoas adultas. Eloquente, ele encanta plateias com frases de impacto em seus discursos.
Para a psicóloga Elaine Mardegan, esse comportamento tem impacto negativo no desenvolvimento de uma criança, embora não tenha relação com a sexualização.
— Mesmo que a princípio ser palestrante motivacional pareça ser "uma brincadeira", o mundo desta criança está sendo igualado ao mundo os adultos, podendo gerar altos níveis de ansiedade e até depressão. Isso faz com que as crianças fiquem cada vez mais próximas de todas as características pertinentes ao mundo adulto, seja pela agenda cheia, os compromissos ou a visão sobre seus corpos.
A assistente social Sâmia Souza Lago reforça que essa adultização no vetor corporativo é um prato cheio para criar jovens frustrados e estressados.
— Independentemente do que esteja sendo propagado nessa mensagem, a criança está sendo utilizada como agente propagador de uma cultura. E nela crianças podem fazer "coisas de adulto". Entretanto, um menino ou menina ainda não é desenvolvido suficientemente para compreender a implicação emocional ou psicológica e ao que serve uma palestra motivacional nem para ele mesmo.