A liberdade é grisalha
Até onde sei|Carmen Farão
“As ruas deveriam ter caixas acústicas e trilha sonora. Música muda a vida da gente”, imaginavam a grande avenida de mãos dadas enquanto conversavam usando trechos e refrãos dos hits da época. Época de música com letra. Música com letra que tocava nas rádios. Um leve sorriso e o cheiro do café tirado agorinha embaçam os óculos de leitura. Não fazia mal. Olhava sobre eles para um nada que lhe dizia tudo. A xícara que embalava manso, estacionada perto dos lábios. Ato repetitivo e contínuo para que o líquido amornasse para ser apreciado. Lembranças cheiravam café da manhã no campo há algum tempo.
Manhã estranhamente fria para um verão intenso, quente. As plantas e árvores orvalhadas umedeceram o ar seco. Uma nesga de azul outono abria no céu. Pena, iria clarear, veranear.
O calor escaldava tanto as memórias doces quanto o cérebro num todo. O corpo dobrava de peso, tudo lhe era dificultado. Verão que lhe fez mudar para a casa no campo, onde não compunha rocks rurais, mas levara seus livros e discos e tudo mais. O café necessário cobrava pela temperatura do corpo. Definitivamente, suco não compunha as manhãs letárgicas de sono atrasado. Café. Calor. Calor. Calor, calor...
“As ruas deveriam ter caixas acústicas...” Nem mesmo com toda a inteligência e visão de futuro poderiam imaginar a explosão tecnológica que transformaria cada pedestre em sua caixa acústica, e o sonho de dividirem a mesma sensação trilhada deixaria de haver para sempre. Sorriu novamente entre um gole e outro do café já possível.
Embora tudo lhe parecesse difícil e inútil, as memórias vinham acompanhadas de alegria e saudade terna. Estava no futuro daqueles anos e a sensação era controversamente de ter poder sobre o tempo. Como se pudesse mudar o futuro a partir do passado que não seguiu o rumo esperado. Hoje podia escolher entre ficar no passado, viver o presente ou vibrar o futuro. Coisa louca, essa. Toda a vida vivida até ali para concluir que a liberdade tem idade e dura o tempo que a saúde física permitir durante o gozo dessa plenitude. Não conseguia deixar de pensar: a liberdade é grisalha. O resto é vontade, imaginação, autoconvencimento.
Como sempre, na contramão, rejuvenescia a cada aprendizado. Gerações metabolicamente aceleradas, tecnologicamente equipadas de tempo, músculos e “altas sacadas” desfilavam na avenida em seus apps alegóricos esperando as notas e o título de campeões dadas por nós, críveis e possíveis humanos libertos daquilo tudo. Abertos. Talvez nem tão musculosos quanto, mas com as maiores sacadas possíveis.
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