Bricolagem

Colei a cauda da arara vermelha de resina, imã na geladeira que veio na reforma, agora ela conversa com a arara azul de madeira de Caraíva (BA), lembrança de um passeio entre as aulas de surfe em Itacaré, chegando ao mar para sempre, engraçado um casal de araras foi a primeira foto que ela viu no livro da Amazônia naquele encontro no Santos Dumont, amor em ponte-aérea, restaurei o Citroen preto boca de sapo, companheiro de prateleira da Mercedes creme, conversível, estofamento grená, dedicada à memória de meu pai, consegui com o restaurador croata a estrelinha do capô, arrumei os livros na estante da sala-copa, enfim branca para aumentar o nanoapartamento, em ordem alfabética por autor, Jornalismo, Teoria e Crítica Literária, os de Literatura mesmo moram no quarto, toda manhã penso na penumbra o que vou escrever, Filosofia, História, tracei o Toynbee de “A Humanidade e a Mãe Terra”, todas as eras do Hobsbawm, apresentei ao orientador a versão preliminar do projeto de pesquisa do doutorado, assinei a “Piauí”, leio de ponta a ponta como a “História” da Biblioteca Nacional, joguei fora uma tonelada de papéis, classifiquei outra, vendi as tralhas, o rack de prancha do Fox passado em brancas nuvens, diferente do do Gol, carregado pra cima e pra baixo, Santos, Itamambuca, para-brisas, plataformas. protetor de carter das motos custom, big trail, aliviou o custo de botar para funcionar a CB 82, primeira moto, documentos regularizados vou nela para a TV, este ano fiz eu mesmo o imposto de renda, bem antes da última hora, me informei sobre aposentadoria no INSS, falei com meu gerente sobre as aplicações, sondei opções de trabalho voluntário, organizei a burocracia da vida, cada coisa em seu lugar, não há recibo médico que não peça reembolso do plano, consultas marcadas, passei no exame do urologista, a namorada e eu chegamos a um ponto de equilíbrio na questão surfe x tempo para nós, estou mais próximo de minha mãe, irmãos, cunhados, sobrinhos, amigos, desatando nós de palavras arrevesadas, silêncios espessos, vislumbro na neblina a manhã acobreada

Perdão. Não fiz nada disso. É tudo fantasia. Exercício de escrever crônica em fluxo de consciência, ficção de bricolagem que, no dicionário, entre outras acepções, é “montagem ou instalação (de qualquer coisa), feita por pessoa não especializada”. Feito viver.

Fiz a crônica. No prazo.