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Casamento da noite

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Então ele descobriu o significado da palavra clique. Não, não era o acender do celular durante voos, hábito recorrente no vício mecanizado das pessoas. Era algo que descobrira dentro dele. Intuiu a definição quando olhava, do jardim do hotel, a orla Leblon e Ipanema estendida como um colar de pérolas envolvendo a noite negra.

Sentiu-se parte dos conflitos que rolavam da areia ao morro, no silêncio que sempre foi um bom companheiro. Olhou para trás e viu a massa do morro do Vidigal pontilhada de luzes misteriosas, de onde emanava o mesmo calor humano que corria invisível pelo ar nobre da zona sul.

Aquilo o remeteu à infância. Estar lá, naquele momento, era como um prêmio a todos os desejos de criança, quando assistia às novelas da TV e via o Rio de Janeiro com a admiração de um sonhador.

Sentia, na época, que tudo que ocorria na tela de sua Philco 26 polegadas tinha a ver com a realidade daquela cidade, pano de fundo das histórias, com seus dramas romantizados por tamanha beleza exótica.


Do sofá paulistano, misturava-se à luta de Nelson Fragonard (Reginaldo Faria) pelo amadurecimento, em Água Viva, muito parecida com a de Cacá (Antonio Fagundes), em Dancin' Days. Ou namorava, à distância, a beleza dos momentos em que o professor Edir (Cláudio Cavalcanti, ô,ô ator...) caminhava melancólico por aquela mesma orla, com seu jeito sério de encarar a vida, acolhido pelas ondas que desvaneciam aos seus pés.

Era uma fase em que ele acreditava que sua identidade se revelava nestes momentos, e não na timidez do contato com as pessoas, quando ele se sentia alguém menos do que comum.


Tinha na imagem do Rio de Janeiro o glamour de um porto seguro. Eram tempos em que ele, enquanto lia as notícias sedutoras da Manchete, degustava um marzipan da Kopenhagen, um delicioso Frumelo, uma bala Sonksen ou uma saborosa Mastiguinha, alimentando esperança remota de alcançar feitos incríveis.

Ansiava por assistir programas em uma televisão de bolso. Queria ter a possibilidade de encontrar todos os tipos de filmes e seriados em qualquer loja, ou de onde estivesse. E falar de onde quisesse por telefone, seria possível um dia? Talvez, pensava, assim como saber as notícias ou receber mensagens imediatas. E se deslumbrava com a ideia de, um dia, qualquer loja esportiva ter à disposição as camisas oficiais da Itália, Espanha, França e até de Israel.


Criava histórias com sua irmã sobre esses milagres. Brincavam de inventar estas situações maravilhosas enquanto eram levados pelo pai da escola até a casa, no banco de trás do velho Fusca esverdeado.

Neste cardápio delicioso, o Rio entrava como convidado de honra, como cidade que também simbolizava estas paragens distantes, onde protagonistas contracenavam como se a vida real se misturasse à ficção.

E observar aquela paisagem emoldurada pelo tempo, para ele, era como pertencer a uma história, pegando emprestado um pouquinho do protagonismo de cada morador da cidade dos seus sonhos, daquela paisagem eternizada na identidade sensual do país. Era como se ele também fosse um Menino do Rio...

Aquela vista tinha um papel: ser a tela de seu passado. E nele viajou ao se lembrar que em noite tão perfumada quanto, voltava sozinho com seu pai, de Santos para São Paulo, quando o Fusca quebrou na serra.

Cercado pelo cricrilar dos grilos na Anchieta, ele via de lá de cima paisagem similar embebida de morro, mar e luz, enquanto, aguardando o resgate, conversava com o velho sobre a vida, situação rara entre eles.

O pai contou como gostava das estrelas que iluminavam seus rostos naquele instante, revelou a vergonha que sentiu quando seu pai descobriu uma camisinha em seu bolso (outros tempos...), explicou o porquê de ter escolhido medicina e lhe perguntou várias coisas, demonstrando interesse e lhe dando conselhos como "vencer é saber lidar com o medo".

Só saiu do transe, com essa frase ainda sussurrando em seu ouvido, quando um carro brecou forte na curva do morro carioca. O barulho parou e novamente ele se deparou com o quadro vivo em sua frente. Era como se tivesse aterrissado no futuro: tinha um celular, com TV. Poderia ver qualquer filme, a qualquer hora. Estava inclusive vestindo a camisa da Espanha. Oficial.

Já não podia, porém, desfrutar da bala Sonksen, da Mastiguinha, do marzipã da Kopenhagen, do Frumelo (e do Azedinho Doce, lembram?), da leitura da Manchete, do velho Fusca e, principalmente, da conversa com seu pai embaixo das estrelas. Enquanto personagem naquele cenário, o que fazer com tudo isso?

Qual milagre hoje seria capaz de abraçar o avanço sem fazer doer a saudade? Desejou, sempre insatisfeito, enviar um WhatsApp, dizendo pelo menos "pai, como vai você?

Respirou fundo diante do mar e, com emoção, se encantou com a luz da lua cheia se espalhando pela água ondulante, como se fosse um véu de noiva a rastejar em um tapete escuro.

Decidiu na hora registrar aquela cena, do casamento da noite com o tempo. Era o momento de usar os recursos. Ergueu o celular para fotografar a cena, na arrogância moderna que damos a este clique. Acontece que o chip estava sem memória. Mas ele não.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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