Fragilidade não é atrevimento
Até onde sei|Carmen Farão
Alguns incentivos pareciam sentença. Não promoviam afeto.
Afeto. Palavra em desuso. Há alguns minutos despedia-se em abraços dos amigos de uma vida. Se considerasse que naquele momento tudo se tornara efêmero e desimportante, uma quase vida. Não eram tempos de filosofia boêmia nem amigos pacientes. Nem de amigos, nem paciência.
“Grande pessoa! ”
Demonstrar fragilidade nesses dias era atrevimento. Um acinte. Como que obrigar quem não quer a consolar. “Atreva-se ao envolvimento, atreva-se! ” Não o fez. Desaprendeu. Mas deveria. Sorriu das conversas que agora pareciam tolas. Comentar suas gorduras nas happy hours, necessidade hospitalar. A festejada viagem e lembrancinhas, uma bobagem.
De um momento para o outro, olhares confessos julgavam sem condescendência. Laços rompidos desintegrando de vez a relação protocolar dos escritórios. Amigos de uma vida. Quase vida. Amigos? A ver.
Enquanto esperava a atendente do quiosque preparar o chocolate quente, suspirou e sentiu o vácuo tão comentado pelos angustiados. Um buraco entre o diafragma e o estômago por onde o ar “saía” meio bobo, meio vento, meio solto. Não enchia o peito.
Pensava em quantas vezes desejou mudar de vida. Quase tantas vezes quantas não quis abrir mão das conquistas e vitórias. E em tantas outras quando ofereceu nudez de alma sem provocar comoção, mas espanto, receio, preguiça.
Corta. Jato de vapor aquecendo o leite.
A balconista repetia as etapas para o chocolate tão mecânica quanto desapegada. Lembrou de Babette. O que sentiria ao tomar a bebida logo mais?
Pegou o copo e ergueu o rosto para aproveitar o calor do sol. O céu estava “azul Liz Taylor”, pensou e riu. Linda cor. Pediu licença à uma senhora bem arrumada, com batom forte que apertava a bolsa sobre o abdome e sentou-se no banco. Nunca tinha se demorado naquelas mulheres, presenças constantes na praça. Notou que a pinta que ela desenhara logo acima do lábio superior estava irregular. Quase pediu licença para corrigir o que parecia um borrão de lápis. Tão arrumada que estava, não merecia aquela pinta disforme. Incomodada com o interesse, a mulher se levantou para longe da inconveniência. Logo desapareceria na massa de pessoas. Havia muita gente na praça, muito o que notar. Ou não. Ou sim. Naquele momento realmente não importava definir o que estava fazendo.
Apertou um dos olhos abrindo o outro. Gostava do sol de frio. De cor e luz. Se via com estranheza do lado de fora, naquele horário de telefonemas e papéis. Não mais tailleurs sobre golas rulê. Mexeu os pés em círculo. Queria usar sandálias. Certamente sapatos mais confortáveis.
A rua estava movimentada. Ouvia tudo como se tivesse tímpanos biônicos. Mesmo de longe. Fofocas corporativas e pedidos de esmola. O mundo desvalido mostrando que poderia ser pior entre risinhos e agradecimentos não lhe convencia. Mas sabia que seguiria incógnita entre aquelas
pessoas. Por mais densas que fossem as conclusões dos pensamentos.
Pessoas, réplicas de uns e outros, marchavam no mesmo passo, falavam no mesmo tom. E mesmo igual, tudo parecia diferente.
Ao mesmo tempo que a tristeza e insegurança forçavam entrada, a alegria pela transformação e novas perspectivas permanecia maior. Talvez fosse mais simples e mais feliz. Talvez a guerra nem tivesse começado. O vigor do desconhecido incentivava.
Sabia-se - a partir daquele dia - protagonista de vários possíveis. Quantos possíveis... parecia uma boa. Uma saudade gostosa. E de novo riu da inspiradora maluquice.
Um grupo de estudantes com uniforme surgiu sem pudores. Meninos xingando-se como se declarando amor, empurrando uns aos outros aos palavrões e debochando das mulheres arrumadas, seus batons e roupas combinando.
Pensou em vocabulário, carreira, respeito. Em educação. No tempo. Na vida. Na conquista de Marte e estações espaciais. Nos jornais e nas canções.
Risadas largas e bem-humoradas aqueciam seu coração.
Era um dia de sol e céu azul.
Um bom dia para recomeçar.
Aproveitou o achocolatado ainda quente com mais um gole.
O dia continuava bonito, afinal.
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