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Madressilva

Para Gilda Hermanny Tostes

Até onde sei|Octavio Tostes

De repente, minha mãe ficou parecida com minha avó. Na conversa durante uma visita, eu à mesa, ela indo à cozinha, vi o mesmo meneio de rosto. Revi o casaquinho abraçando as costas arqueadas e o riso, tal qual.

“Coisa linda da vovó”, dizia sempre, fosse eu criança, rapaz ou homem feito. O sorvex Napolitano que dividíamos em metades gulosamente iguais. Pão careca com presunto que não havia no interior nos anos 60 do século passado e era para mim o gosto do Rio. O carteado no feltro verde. Vinho, música, livros, Contos gauchescos e lendas do Sul. Os esquetes da rádio PRK 30 que imitava às gargalhadas.

De minha mãe, neste baralho das memórias, o anel de ágata. (Quis tê-lo dado a uma namorada mas ele foi para minha irmã). Eu bebê tocava a pinta no canto esquerdo do queixo, ela fazia um gorgorejo carregado nos erres, me assustava, ríamos. A voz. Morna, modulada e macia, contava histórias. Reis, princesas, cavalos, feras, florestas encantadas. Ouvia primeiro com a cabeça no colo, depois ao lado de meus irmãos menores.

Guardava em pastas tudo que eu escrevia. E mostrava a quem pudesse dizer qualquer coisa - até hoje. Lições: não minta! (a pinta severa como todo o rosto imenso, tão perto). Faça na vida o que quiser, mas faça muito bem. Você responde por seus atos. Seja feliz


A mulher que cuidou da sogra, do marido, da mãe e do pai, feitos dois enterros e espalhadas duas cinzas, foi cuidar de si. Venceu a preguiça, entrou no tai chi. Delicia-se com as coisas da bisneta, Maria Flor, e me conta, a voz raleando (nestas horas a gargalhada também relembra minha avó).

Escreve crônicas para o jornal da cidadezinha onde criou os filhos. Faz análise e dança de salão. Lê todo dia as legendas de fotos da Nasa - para não perder o inglês e aprender astronomia - e de vez em quando manda alguma por email. Constelações, buracos negros, aurora boreal. Saiu do tai chi, continua a escrever e a dançar, o passo mais miúdo.


No telefonema de um domingo desses, falou animada das flores de sua infância na Gávea. Gerânios, brincos de princesa, jasmins do imperador. Recitou os versos que ouviu menina quando levou para a avó, minha bisa, um carinho. Quem pela madressiva passou/ e uma flor não pegou/ do seu bem não se lembrou... Madressilva, substantivo feminino, 1553, latim medieval, mãe + selva. Acho que o que vai ficar, por artes da voz, será um misterioso canto de floresta recendendo a fragrância de raro mel.

PS: Li para ela antes de publicar. “Que lindo, meu filho”, sorriu. Disse que ao espelho às vezes ela também revê minha avó. Lembrou um poema do Quintana. Parecia feliz com meu presente pelos 79 anos neste 13 de março de 2015.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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