Nó de gravata
Até onde sei|Octavio Tostes
Diante do espelho na casa de campo, numa tarde de sábado, passo a gravata pelo colarinho e lembro de meu pai. Ele me ensinou a dar o nó. Nunca acerto de primeira. A ponta da parte larga fica longe do cinto. Desfaço. É uma aventura achar o ponto certo de sorte que o nó e a gravata confiram ao homem refletido alguma elegância.
Em quase 40 anos de jornalismo, só usei terno no início, repórter de televisão. Depois, redator em impressos e editor em tevê, pouco vesti o uniforme da sobriedade. Em mim o traje não é a segunda pele que parece ser em advogados feito meu pai e meu irmão. Talvez por isso o embaraço com o nó. Tá, na defesa do mestrado enverguei gravata. E me escudo nela nos casamentos.
A casa emprestada pelo fim de semana está à venda. A sombra nos cômodos guarda memórias desconhecidas. Pairam invisíveis sobre quadros, sofás, mesa de centro, poltronas, mesa de jantar e carteado, camas, bibelôs e a estante com troféus de futebol, carrinhos e o berimbau da família de ex-capoeiristas. Tudo prestes a se perder. Esta iminência também lembrou meu pai, morto faz 27 anos.
Passo a parte larga da gravata sobre a estreita, dou a volta por baixo e quando vou fazer o nó, me vejo no espelho. Revejo o pai. No amendoado da pele do rosto, no contorno dos lábios e do nariz, nas pintas que agora brotam em minhas mãos. A voz ressoa a dele, me dizem. Nó feito, a mão direita segura o laço e a esquerda puxa a gravata para ajustar. Dobro o colarinho.
O laço nos une além da aparência. “Gravata é sinal de respeito”, ouço-o ainda. Todos têm direito ao bem comum. “Advocacia é a postulação do Direito em defesa de interesses”. O maior legado foi a noção de que o mais importante na vida é ser lúcido. Escorou-se nela diante do câncer. E reafirmou o exemplo de honestidade - para consigo mesmo, com os outros e os fatos.
Nos últimos anos a saudade dele ganhou novas feições. Como amaria a bisneta, filha da neta mais ligada a ele? O que sentiria nos casamentos e formaturas dos netos. O que diria do momento do Brasil. Conversaríamos?
Visto o paletó e miro mais uma vez o espelho. Viro o rosto de perfil. Ele, de novo. Ao meio. Se o sem jeito com o nó da gravata põe em dúvida quanto aprendi com meu pai, a persistência das lembranças sugere o contrário. Na superfície da tarde, me reconheço no homem engravatado tateando claros e escuros, desacertos e tentativas. E, de saída para o casamento da amiga das enteadas, sorri - entre a tristeza e a sorte.
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