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Nó de gravata

Até onde sei|Octavio Tostes

Meu pai discursando nos anos 1960 quando eu era menino
Meu pai discursando nos anos 1960 quando eu era menino

Diante do espelho na casa de campo, numa tarde de sábado, passo a gravata pelo colarinho e lembro de meu pai. Ele me ensinou a dar o nó. Nunca acerto de primeira. A ponta da parte larga fica longe do cinto. Desfaço. É uma aventura achar o ponto certo de sorte que o nó e a gravata confiram ao homem refletido alguma elegância.

Em quase 40 anos de jornalismo, só usei terno no início, repórter de televisão. Depois, redator em impressos e editor em tevê, pouco vesti o uniforme da sobriedade. Em mim o traje não é a segunda pele que parece ser em advogados feito meu pai e meu irmão. Talvez por isso o embaraço com o nó. Tá, na defesa do mestrado enverguei gravata. E me escudo nela nos casamentos.

A casa emprestada pelo fim de semana está à venda. A sombra nos cômodos guarda memórias desconhecidas. Pairam invisíveis sobre quadros, sofás, mesa de centro, poltronas, mesa de jantar e carteado, camas, bibelôs e a estante com troféus de futebol, carrinhos e o berimbau da família de ex-capoeiristas. Tudo prestes a se perder. Esta iminência também lembrou meu pai, morto faz 27 anos.

Passo a parte larga da gravata sobre a estreita, dou a volta por baixo e quando vou fazer o nó, me vejo no espelho. Revejo o pai. No amendoado da pele do rosto, no contorno dos lábios e do nariz, nas pintas que agora brotam em minhas mãos. A voz ressoa a dele, me dizem. Nó feito, a mão direita segura o laço e a esquerda puxa a gravata para ajustar. Dobro o colarinho.


O laço nos une além da aparência. “Gravata é sinal de respeito”, ouço-o ainda. Todos têm direito ao bem comum. “Advocacia é a postulação do Direito em defesa de interesses”. O maior legado foi a noção de que o mais importante na vida é ser lúcido. Escorou-se nela diante do câncer. E reafirmou o exemplo de honestidade - para consigo mesmo, com os outros e os fatos.

Nos últimos anos a saudade dele ganhou novas feições. Como amaria a bisneta, filha da neta mais ligada a ele? O que sentiria nos casamentos e formaturas dos netos. O que diria do momento do Brasil. Conversaríamos? 

Visto o paletó e miro mais uma vez o espelho. Viro o rosto de perfil. Ele, de novo. Ao meio. Se o sem jeito com o nó da gravata põe em dúvida quanto aprendi com meu pai, a persistência das lembranças sugere o contrário. Na superfície da tarde, me reconheço no homem engravatado tateando claros e escuros, desacertos e tentativas. E, de saída para o casamento da amiga das enteadas, sorri - entre a tristeza e a sorte.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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