O homem que vigiava o tempo
Até onde sei|Eugenio Goussinsky
Quem olhava para o rosto do seu Marinho, jamais deixaria de notar o sorriso estampado. Seu Marinho era um senhor de quase 60 anos, negro, franzino, que trabalhava de atendente de uma escola de música. Entre uma folga e outra, lavava os carros dos alunos, proprietários ou quem quer que fosse. Sua feição era peculiar. Um fino bigode contornava o sorriso. Lá pelos anos 80, começava a embranquecer, assim como seus cabelos crespos e rentes.
Seu Marinho nasceu e cresceu na Parada Inglesa, bairro de periferia paulista, fugindo dos grandalhões que queriam provocá-lo por causa do físico mirrado. Não era frequentador dos bares da esquina. Nem bebida, nem cigarro eram de seu uso costumeiro. Mantinha um puritanismo de hábitos e gestos, criando uma cartilha própria de comunicação, que o afastava dos outros.
No seu semblante, um ar de mistério pairava por trás daquele sorriso quase permanente. Congelava seu olhar, passando um misto de desejo de aceitação e pedido de desculpas, num estilo chamado pela literatura de melífluo. Havia nele uma verdade que incitava a nossa empatia.
Era comum vê-lo de esguicho na mão, na entrada das casas, lavando carros em uma época em que o racionamento de água não ameaçava. Mantinha a pose: corpo ereto, sorriso fixo, roupa social e sapatos velhos, mas bem-acabados. Quase não se molhava. Quando um ou outro respingo o atingia, fazia questão de mostrar que aquilo não o abalava e nem lhe tirava a dignidade.
Assim que alguém se aproximava, ele dava um passinho para trás, abaixava levemente a cabeça e se punha a conversar sobre o único assunto que lhe era seguro: o tempo.
Se estivesse um dia de sol, lá ia o seu Marinho diante do interlocutor, iniciando o diálogo com a mesma pergunta, mesmo que a resposta fosse óbvia, como a luz escaldante que descia do céu azul.
"E o tempo? Como está o tempo?"
Antes de ouvir a resposta, ele completava.
"Está sol, né? Que beleza, assim você pode ir passear com o papai e com a família", dizia, induzindo um ar comemorativo, a mim, com 17 anos, como se eu fosse ainda uma criança.
Marinho conduzia seu estado de espírito de acordo com o tipo de clima.
E desejava que o outro assim o fizesse, para que o contato não tomasse caminhos desconhecidos. Sem verbalizar, pedia para os outros um acordo tácito. Implorava uma trégua que acalmasse seus tormentos interiores. Selava permanentemente, com esse assunto, um pacto de não agressão.
Se estivesse sol, ele buscava irradiar alegria. Se estivesse chovendo, falava com um leve ar de lamentação. Suas palavras ressoavam uma timidez, por meio da voz fina. Seu tom era baixo, mas o assunto falava mais alto. Mesmo que às vezes o interlocutor não ouvia exatamente o que ele dizia, não havia problema. Afinal, todos já sabiam de antemão qual seria a pauta do bate-papo.
Nos dias de chuva, quando ele entrava na recepção para entregar a chave, antes de ir embora, não perdia a oportunidade.
"E o tempo? Como está o tempo? Que chuva hein? Mas se a mamãe e o papai quiserem podem levar para um cineminha."
Nos momentos em que o tempo estava nublado, o teor do assunto variava um pouco. Resvalava na possibilidade da mudança, em como o clima estaria no dia seguinte.
"E o tempo? Como está o tempo? Será que amanhã vai fazer sol? Pelo visto esse ventinho vai levar as nuvens para o mar e vai ter sol. Que beleza!"
Cientes desta característica do seu Marinho, todos o respeitavam. Era um senhor pacato, respeitoso, conformado com os desígnios da vida, que não o conduziram para o caminho do estudo formal.
É comum, quando não há assunto, duas pessoas adentrarem por esta temática do clima. Trata-se até de uma solução habitual, socialmente aceita. Acontece que, com o senhor Marinho, essa necessidade era exagerada. Apegava-se ao assunto como o religioso se apega ao seu amuleto diante da ameaça do mal. E não deixava transparecer uma riqueza de lembranças e valores escondidos dentro de si.
Seria o outro um mal para o senhor Marinho? A resposta veio na primeira vez que ele mudou de assunto. E seus olhos verdadeiramente brilharam, sem aquela luz opaca dos fingimentos. Reluziram de uma maneira profunda, como se, justamente para ele, um horizonte ensolarado se abrisse de repente, irradiando um céu gris quase divino.
Foi quando o senhor Marinho falou do Corinthians. Ele ficava tão distante, que parecia não saber dos times das pessoas. E ninguém ousava falar com ele sobre outro assunto que não fosse aquele já citado. Reinava um vácuo de comunicação em relação a outras searas além das meteorológicas.
Mas Marinho se entusiasmou por perceber que eu conhecia o futebol do passado. Quando ouviu o nome do Cabeção, sua fisionomia robotizada ganhou vida. "Ô Cabeção, que goleiro! Quando dava eu ia para o Pacaembu assisti-lo e era uma alegria. Gritava: aleguá, aleguá, Cabeção vai agarrá."
O papo tomou outros contornos. Ele aproveitou para contar que era neto de escravos de uma fazenda no Paraná. Seus avós criaram o pai na roça. Quando o pai cresceu, se casou com uma moça negra do sítio ao lado, em Itapira, e foi com ela morar em São Paulo.
O pai se tornou sapateiro, obrigado a encontrar profissão. O casal se instalou em um barraco da Parada Inglesa. Foi lá que o menino Marinho nasceu, filho único, sem nunca ter com quem conversar. Cresceu ouvindo Pixinguinha, Braguinha e Ataulfo. Daí o seu prazer em trabalhar na escola de música.
Na infância, viu o pai ser xingado de "negro" quase todo dia, pelos industriais em seus carros, rumo às mansões da Avenida Paulista. Se ele passasse ao lado de onde estacionavam, lá vinha a injúria.
Um dia viu um policial derrubar o chapéu do pai porque ele demorou para encontrar o documento. Também nunca se esqueceu daquele fim de tarde, quando caminhavam pela rua São Bento e, com sede, seu pai foi comprar água no bar, mas não puderam entrar. Foram algumas histórias que, de roldão, ele lembrou como se estivesse em transe.
Ele tinha poucos amigos na infância. O Giba, seu vizinho, era um deles. Também era negro. Um dia, o amigo o convidou para ir junto ao jogo. "Sei como entrar".
Foram de bonde, depois a pé, por entre ruas enlameadas, rumo ao Pacaembu. O pai do Marinho conseguiu uns trocados para a condução e disse. "Vai com Deus, filho, é bom se distrair."
Chegaram bem antes e, nos arredores do estádio, começaram a lavar os carros de um ou outro que estacionava. Com o dinheiro, pagaram o ingresso e ainda sobrava algum. Isso virou um hábito. Por todas as décadas de 40, 50 e 60, lá estava o seu Marinho, perto do Pacaembu, lavando carros com os colegas. Conseguiam uns trocadinhos a mais e, ainda por cima, podiam ver o Corinthians.
Marinho vibrou muito com o trio Jango, Brandão e Dino. Acompanhou a fase final de Teleco, o começo de Luizinho e Cláudio e o esquadrão corintiano dos anos 50.
A paixão dele pelo Corinthians tinha muito a ver com gratidão. Nos jogos, no meio do povo, Martinho não era um “negro”, era um negro, era alguém de valor. Era realmente ele. E mais um importante grito que fortalecia a multidão. Percebi isso quando ele falou. "O Corinthians foi a minha casa".
Envelhecido, a partir dos anos 80, não podia mais ficar sempre indo às partidas. Se afastou porque tinha dor nas costas, de tanto lavar carros. Precisava sobreviver. Solitário que era, passou por um período distante também por causa da morte do pai.
"Fui ao hospital, tava trovejando. Quando saí chovia tanto que parecia que o céu chorava comigo". Sempre o tempo, Marinho.
Mas depois se acostumou. Deixou de ir a jogos porque tinha que trabalhar mesmo. E antes de encerrar o encontro, percebi uma lágrima descongelar daqueles olhos sempre atentos e quase imóveis. "Não tem problema não menino", disse, como se pedisse desculpas. "O Corinthians é assim mesmo, faz a gente se emocionar".
Parei de encontrar o seu Marinho no início dos anos 90. Ele se mudou para Itapira e nunca mais deu notícias. Foi conversar sobre o clima lá nas bandas do interior. Soube por puro acaso que ele faleceu pouco tempo depois. Um vizinho, para quem ele lavava o carro, me contou, depois de ter ido procurá-lo. Vai ver que ficou com a mesma curiosidade que eu. Ou que todos.
Conto tudo isso, neste exato momento em que o Corinthians se tornou campeão mundial, com gol de Guerrero. O clube continua o mesmo, apesar de o futebol ter mudado.
Continua, como as outras equipes grandes, abraçando negros, brancos, pessoas de todas as classes sociais, nessa massa democrática e inclusiva que se chama torcida.
Por um momento, enquanto ouvia os rojões explodirem pelas redondezas, me veio na memória aquela conversa sobre o Cabeção. Os gritos se multiplicavam da rua, como em Copa do Mundo.
Eu, que nem sou corintiano, fiquei imaginando o senhor Marinho entrando timidamente na sala, com braços contidos e sorriso armado, perguntando, com aquele tom intimidado sobre um assunto um pouco diferente, o futebol.
Mas ainda impotente para fazê-lo demonstrar suas emoções aos outros. Ele se sentiria obrigado a conter sua alegria. "Como está o Corinthians? Tá bem, hein, foi campeão mundial. Que beleza!"
Então, imediatamente, senti o impulso de mergulhar na conversa daquele senhor, tão nobre em seu instinto de sobrevivência como o seu desejo de ser alguém. Olhei pela janela e vi o sol explodindo raios luminosos por entre as nuvens, forçando seu surgimento de maneira épica.
Como se quisesse tomar a tarde para si, diante de nossos olhos estarrecidos, frágeis e submetidos à força do tempo. Bem como o senhor Marinho queria nos fazer ver. Pensamos ser onipotentes, mas não passamos de uns fracos diante dos humores dos céus.
O sol lutava, transformando a tarde nublada, impondo uma vontade que parecia vir do céu, sob o comando de um Deus corintiano e sofredor. Só para festejar o Corinthians campeão.
Interessante é que, na lembrança daquele senhor, não perguntei para mim aquilo que seria natural: "como está o tempo?". Me vieram outras frases. Apenas olhei para a imensidão do firmamento e emendei, em balbucio. "Onde está o seu Marinho? Como está o seu Marinho?"
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