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Para sempre, talvez

Até onde sei|Eugenio Goussinsky

Saído de uma reunião, o empresário andava apressado em seu traje social pela Paulista. Gostava de olhar o céu, de refletir sobre a vida durante a caminhada, mas naquele momento sentia-se imerso naquela pressa do cotidiano que a tudo banaliza.

Então foi interrompido por um homem esfarrapado, andar trôpego, barba a se avolumar, embranquecida e mal cuidada em seu rosto negro. Estava envolto em um cobertor rasgado e usava sandálias gastas, cansadas de uma caminhada inútil.

O homem se dirigiu a ele, que logo deu dois passos para trás, temendo um possível esfaqueamento. Mas se conteve. E se sentiu corajoso ao olhar no olho da pessoa e tentar entender o que causava tamanha desilusão, além da evidente carência financeira.

—Moço, você tem comida? Estou com fome.


Hoje, nestes tempos de banalização, alguém lhe dizer que está com fome já não é considerado algo hediondo, como deveria ser. E se for mentira? Não importa, porque, mentindo ou não, se alguém lhe clama por comida, bem não está.

Mas não era só isso. No olhar do homem, resplandecia uma verdade. A verdade de quem já está farto de falar para ninguém ouvir. De alguém exaurido de existir como se fosse um trapo, ou um bicho, tal qual o poema de Manuel Bandeira. De alguém aprisionado no papel de algoz de si mesmo.


A tristeza do olhar dele dizia algo além da necessidade física. Almejava um aceno, uma resposta, uma palavra de consideração. Uma bronca, que fosse. Então ele prosseguiu em um desabafo que misturava embriaguez e revolta, em um tom alto, chegando a constranger o interlocutor. 

Enquanto ouvia o desabafo, foi assolado pela preocupação sobre o que os outros pensavam daquele louco que conversa com um mendigo. Mas se refazia do conflito e continuava escutando.


—Estou cansado. Se continuar assim sabe o que eu vou fazer? Roubar! Vou roubar!!!

Firme, apesar dos olhares alheios daqueles que nada fazem, não fugiu da conversa. Não cedeu à chantagem. Apenas perguntou com interesse e reverência à idade avançada do pedinte.

—O senhor já almoçou hoje?

O outro continuou esbravejando por um tempo, até que se deu conta de que finalmente alguém lhe perguntava sobre ele. E o chamava de senhor! Parou de gritar, fez uma pausa, olhou para cima e respondeu à pergunta inusitada, puxando pela memória.

—Não.

Ainda desconfiado em tirar a carteira no meio da rua, o homem orientou o mendigo a esperar um pouco ali. Iria entrar no prédio e já lhe daria algo. Subiu quatro degraus até a portaria, mas começou a demorar, porque não encontrava trocado.

Teve de ir à recepção. Conseguiu trocar uma de 20 nessa estranha situação. Demorou quase dez minutos até o fim da operação. “Ele já não estaria mais ali, descrente de tudo nesta vida”, pensou.

Paciente, silencioso, porém, o cara esperava na mureta do prédio, encontrando a sobriedade. Talvez uma cortina para a realidade estivesse se abrindo entre os barulhos da rua, as buzinas, os carros e transeuntes apressados naquele cenário de luz sobre o concreto armado. 

Talvez a respiração naquele ar poluído de indiferença, mas de possibilidades, começasse a abrir seus pulmões e sua mente. Talvez, talvez.

Talvez um gesto de atenção começou a desenhar em seu mundo um outro cenário, tornando o cinza do asfalto menos vistoso do que o azul, ainda que enfumaçado, do céu da tarde.

Ele recebeu com reverência uma nota de dois reais. Ouviu, com alegria de um menino que ganhou um autorama, a sugestão de ir comprar um pão com manteiga. 

Todo aquele ódio se desfez em frases de pureza eloquente, como "Deus o abençoe". E o empresário saiu de lá rapidamente, para não se sentir endeusado, logo percebendo que tinha mais uma nota de cinco e mais duas de 10 e que ele deveria tê-las dado para que o outro pudesse almoçar. Mas não adiantava chorar. O metrô já andava, como a vida que não volta.

E se lembrou daquela frase que tanto o incomodava, fria, dos jornais sensacionalistas: "matou por causa de dois reais". Por quê? Matar por 1 bilhão tem alguma justificativa?

Enquanto as estações passavam, em alta velocidade, ele ia se apoderando de que, por menos que tivesse feito, havia feito alguma coisa. Que foi se cristalizando como certeza. 

No fim, algo o fez se sentir com o dever cumprido, já saindo do trem rumo à Vergueiro, para virar a página dos fatos cotidianos, naquele mesmo céu azul que abarcava todos os paulistanos ocupados com seus próprios enredos, a interagirem sem perceber. 

Novos mendigos iriam aparecer à sua frente, fazendo-o se deparar permanentemente com o dilema e com sua própria identidade. Mas pelo menos aquele homem desprezado pelo mundo, e por ele próprio, deixou de lado a ideia de roubar. Para sempre, talvez. Por causa de dois reais.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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