Reencontro no kibutz de Israel
Até onde sei|Eugenio Goussinsky
Até hoje imagens do kibutz Givat Brenner voltam em flashes à minha mente. A primeira delas é a de um longo gramado à frente de uma sequência de casas, onde fiquei com minha família, em minha primeira viagem internacional. O ano era 1976.
A casa, na verdade, era um quarto com banheiro acoplado. Dormi ao lado de minha mãe, enquanto meu pai ficou no quarto vizinho. O travesseiro era macio, a cama aconchegante, em uma atmosfera nova e bucólica que a vida comunitária me transmitia.
Até hoje não entendi ao certo o que houve quando, no dia seguinte, a fronha estava manchada de vermelho, em função de um sangramento em meu nariz. Possivelmente, a pressão da novidade, em uma terra estrangeira, foi determinante.
Havia um aroma especial adocicado de querosene, usado nos lampiões que iluminavam a noite cercada de mata e de cricrilar dos grilos. O tio Abrahão Gontow, figura imponente que mudara para Israel três anos antes, chegou a dirigir um trator para eu ver como era.
Meu tio trabalhava em uma fábrica de alumínio e me deu uma peça decorativa, parecida com uma âncora cheia de detalhes. Outra era mais pesada e volumosa. Eram espécies de obras de arte que brotavam daquele material, me fascinando.
Em uma das noites, sob o sereno, ao lado de minha prima Denise, vimos seu irmão, o Mauro, andar misteriosamente pela trilha que levava ao heder ohel (refeitório). Com a gola do casaco levantada, ele passou sem falar nada, como se quisesse se disfarçar.
Conheci então um pouco mais do espírito israelense, um tanto duro e enigmático, que ele começava a assimilar, após chegar ao país com oito anos de idade.
Havia também um quê de jeito gaúcho, pois eles eram de Porto Alegre. Aliás, por defenderem fronteiras, gaúchos e israelenses têm um modo direto, objetivo e às vezes duro de ver a vida.
Meu tio que o diga quando se ofendeu, ao entrar na casa de seu primo, após este ironizar a chegada de minha vó, que viajava conosco.
"Primo, trouxe minha mãe para ver você." A resposta foi curta e grossa: ”E eu com isso?"
Eu já estava na sala, contemplando os castiçais, o conforto do sofá, os enfeites das paredes, decifrando um pouco mais de um lar em Israel, quando o tio, ofendido, disse para irmos embora.
"Ninguém fala assim com minha mãe", bradou, em seu estilo gaúcho e temperamental. Surpreso, o primo dele tentou argumentar. Disse que era brincadeira (devia estar meio irritado no momento). Mas, não admitindo que seu comentário foi infeliz, ainda retrucou, teimoso, sem pedir desculpas: "Se tu quer então, não posso fazer nada ..."
Minha vó, com sua sabedoria doce e tranquila, saiu sem reclamar, serena, tentando conter o ímpeto do meu tio. E chegou a me dizer, sem nenhuma tristeza: "Fique tranquilo, os encontros superam os desencontros".
Ela sabia. Outras pessoas, afinal, foram muito mais calorosas com ela naqueles dias. Testemunhei quando ela reviu uma de suas irmãs, que foi visitá-la no kibutz, 48 anos após se separarem. Minha vó veio para o Brasil ainda antes da Segunda Guerra e depois nunca mais tinha visto seus familiares poloneses.
Até o momento do reencontro, o qual presenciei. Ficaram se abraçando por longos minutos no entardecer, com os cabelos embranquecidos mas a alma renovada, naquele mesmo gramado em frente às casas.
Soube depois que Givat Brenner foi fundado justamente por poloneses. Além de alemães e lituanos, com o trabalho de Enzo Sereni. Ele morreria nos anos 40, após integrar missão de paraquedistas, invadindo a Itália para se arriscar e salvar vidas judaicas na Europa. Golda Meir, então proeminente figura da Agência Judaica, como uma mãe, o aconselhou a não ir.
Esse Givat Brenner, fundado por um idealista, é o mesmo Givat Brenner dos meus 7 anos: um palco de aprendizado. Lá aprendi que o sofrimento de um povo, de uma família, de uma mulher, na dor e na distância, nos ensina a lidar com os desencontros mesquinhos do dia a dia. E a valorizar muito mais os verdadeiros encontros. Estes sim, superando o tempo e a distância, são para sempre. Tanto que, ainda hoje, a novidade soa para o adulto tão surpreendente quanto soou para o menino: "Caramba, 48 anos!"
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