Viagem
Até onde sei|Octavio Tostes

Acabei de vender minha primeira motocicleta, após longo convívio. Era uma Honda CB 400, 1982, preta, um ícone. Para quem curte, primeira motocicleta é como primeira namorada. Um sonho. No meu caso, antigo. Nos álbuns da família há um foto minha magrelo, óculos e calça curta, sorridente numa Caloi vermelha. O arame surrupiado do almoxarifado da fazenda tinha virado um para-brisas sobre o guidão, onde se sobressaíam as alavancas do freio dianteiro e da embreagem da minha Harley de faz de conta.
Quando meninote eu descia sem frear a estrada de terra que corta o morro do hospital, em Miracema (RJ), vento silvando nas orelhas, imaginava que a Monark laranja era uma Norton 750 deitando numa curva da temível prova de motovelocidade da Ilha de Mann, no Reino Unido. A primeira deitada de verdade vivi somente aos 30, na garupa do fotógrafo Edu Simões, de quem comprara a CB. Uma noite em Ipanema ele arrancou na Vieira Souto e num dos retornos, reduziu - quarta, terceira, o motor gritando, segunda - jogou o corpo e acelerou.
A primeira viagem, Rio — Arraial do Cabo, me deixou quase um robô tamanha a tensão no pescoço, de medo. Ficou a foto — eu, Paulinho na garupa — tirada pela Wanda que já se foi. Eles me deram “Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas”, romance filosófico da viagem de pai, filho e um casal amigo em duas motos por paisagens desertas dos Estados Unidos nos anos 70.
A CBzona carregou minha irmã Bel pela orla carioca e Floresta da Tijuca em passeios memoráveis com cheiros de maresia, gasolina, mata molhada, dama da noite. Levou também amigas, namoradas e amparou um beijo. Paciente, suportou comigo na garupa do Otto um mico daqueles que acontecem quando se misturam bebida e dor de cotovelo.
Ano passado a restaurei para usar no dia a dia. Não deu. Havia sempre coisa a fazer com peças quase inexistentes. A decisão de vender foi difícil. Com meu amigo Irb na garupa, fiz uma foto igual àquela com o Paulinho. O início e o fim. E... Amithai, o novo dono da CB, desconfiou da rateada que ela dava ao ligar. Abriu o motor e descobriu que tinha sido retificado várias vezes, do que eu não sabia. Ou fazia um reparo caríssimo ou encontrava um motor substituto. Achou.
Vendida a mãe de todas as minhas motocicletas — outras dez que passaram —, fiquei órfão. Suspenso me dei conta de que o menino que sonhava motos só começou a ser motociclista quando já era um homem e precisou de cinco tombos em vinte anos para aprender a andar sobre duas rodas, em busca do equilíbrio próprio entre o cuidado que preserva e a destreza que enfeitiça. Agora, saindo de férias numa Honda CTX 700 N, 2014, preta, vai reler o “Zen e a arte…”, uma investigação sobre valores.