Culta e vaidosa: livro conta história de Eunice Paiva que ficou de fora do filme com Fernanda Torres
Romance ‘Ainda Estou Aqui’, publicado por Marcelo Rubens Paiva em 2015, debruça-se sobre a doença da mãe, seus anos finais e a juventude do autor

Quem lê o livro Ainda Estou Aqui (R$ 79,90; 246 págs.; Cia. das Letras), lançado em 2015 e que deu origem ao filme brasileiro pré-indicado ao Oscar, parece estar dentro de outra história.
Não que haja diferenças entre a obra de Marcelo Rubens Paiva, eternamente lembrado (ao menos por uma obcecada versão adolescente da minha pessoa) por ter escrito o romance geracional Feliz Ano Velho), e a realidade. Mas o recorte é outro.
O longa de Walter Salles se detém, por escolha própria, claro, a contar o desaparecimento do pai de Marcelo, o engenheiro Rubens Paiva (1929-1971), durante a ditadura militar e o impacto disso na família. Ele saiu de casa para prestar um “depoimento” e simplesmente nunca mais voltou.

É daí, desse foco, que emerge, aliás, a figura de Eunice Paiva (1929-2018), papel de Fernanda Torres, que levou o Globo de Ouro deste ano por sua atuação. Joga-se luz à maneira como essa mulher, sozinha de uma hora para outra, criou os cinco filhos, formou-se em direito, especializou-se na defesa indígena e ainda lutou a vida inteira para encontrar o corpo do marido — em vão.
Agora, a expectativa é o Oscar.
Voltando ao livro: o que se vê nesse romance é muito mais um relato sensível de um filho que acompanhou a mãe, dia após dia, perder a memória e a consciência que, somadas, faziam dela ela mesma.
Antes de morrer, Eunice viveu 15 anos com Alzheimer. E quem teve alguém que sofreu ou sofre da doença sabe o que é isso. É o longo e cruciante processo de ver uma pessoa querida ir embora aos poucos, aos fragmentos, aos frangalhos. Foi Marcelo o guardião legal da mãe até sua morte, em 2018.
Se o pai, sabe-se hoje, morreu no dia seguinte ao seu sumiço, em decorrência da brutalidade da tortura à qual foi submetido, a morte da mãe de Marcelo também não foi bonita — se é que existe alguma que o seja.
Mas, se o livro afunda nessa dor, antes, mostra ainda mais do que o filme as nuances da personalidade de Eunice.
Dona de casa abastada, culta, vaidosa; falava fluentemente inglês e francês; amiga de Lygia Fagundes Telles (1918-2022), Antônio Calado e Haroldo de Campos; viagens que duravam meses à Europa sem os filhos para aproveitar com o marido. Babás, funcionárias para cuidar da casa. Obsessão com dieta, trancava-se no quarto para não comer, uísques caros, quadros valorosos; rainha da etiqueta.
Eunice era, nas palavras de Marcelo, “prática, culta, magra, sensata e workaholic.”
“Deve ter me dado uns quatro beijos na vida”, diz, em certo trecho.
É com essa franqueza que ele evoca memórias da infância e da juventude, que contribuem para excertos maravilhosos do livro.
O dia em que a mãe o vestiu de caipira para uma festa do colégio Andrews, no Rio, onde as escolas não têm essa tradição; a ocasião em que levou uma mensagem escondida dos militares em uma caixa de fósforo à vizinha; e, finalmente, a libertinagem com a qual a mãe o permitia viver a vida, regada a álcool, sexo, drogas, cigarros.
*
“Você lembra de mim?”, costumavam perguntar a Eunice os mais chegados. Uma resposta da filha Veroca é uma lição à sociedade:
“O fundamental não é a lembrança, mas como você interage com ela hoje.”
Mas como você interage com ela hoje.
Mas como você interage com ela hoje.
Mas como você interage com ela hoje.