‘Minha maior missão’: Tamara Klink fala de livro sobre os 8 meses isolada na Groenlândia
Velejadora, que chega ao Brasil em novembro, espera que relato sirva de inspiração para que outras pessoas ‘sonhem em viajar também’
Estante da Vivi|Vivian Masutti, do R7
Aos 27 anos, Tamara Klink não parou após virar notícia internacional, em julho deste ano, depois de invernar durante oito meses em um fiorde inabitado na Groenlândia. A velejadora e escritora brasileira, filha do navegador Amyr Klink, emendou uma viagem ao norte do território — desta vez com o namorado —, de onde falou por telefone com o R7.
“Foi a primeira vez em que naveguei em dupla. Durante muito tempo, vivi sem ninguém me contradizer”, contou ela, antes de continuar a conversa em que falou de literatura de aventura, das obras que leu enquanto estava presa no gelo, de seu trabalho como escritora e do próximo livro que está preparando.
“Durante a viagem, li Grande Sertão: Veredas no celular, que era o suporte que consumia menos bateria. Não tenho Kindle. Uma vergonha, né? Acho que sou meio conservadora”, disse Tamara. “Até um ano atrás, não existia Starlink [plataforma de satélites que levou a internet aos polos], então, a gente tinha muito tempo livre a bordo.”
Autora dos livros Férias na Antártica (2010), Mil Milhas (2021), Um Mundo em Poucas Linhas (2021), Crescer & Partir (2022) e Nós (2023), a jovem diz que seu primeiro compromisso, assim que chegar ao Brasil, em novembro, será escrever sobre esses oito meses.
“Construí minha vontade, meu desejo e meus planos lendo os outros. A melhor maneira de retribuir às pessoas que me incentivaram, me apoiaram e me acompanharam na viagem é compartilhar os relatos, para que elas possam ao menos imaginar como é viajar e sonhar com isso também.”
R7 — O que você está fazendo aí na Groenlândia até agora?
Tamara Klink — Estou terminando uma viagem de um mês até o norte do território [Tamara concedeu esta entrevista no dia 4 de setembro]. Foi a primeira vez em que naveguei em dupla, com o Clement, meu namorado, que foi quem me ajudou a preparar o barco. Foi uma boa transição porque, durante muito tempo, vivi sem ninguém me contradizer. Ainda mais com tantas decisõezinhas que você tem que tomar, né? Às vezes, o Clement diz que estou sendo muito radical nos meus pensamentos. Às vezes, é um bicho na água, é uma baleia que eu não vi, é alguma informação diferente. Navegar em dupla envolve aprender também a confiar no outro. Enquanto eu durmo, ele que está cuidando do barco, fazendo as manobras. Enquanto ele dorme, eu que cuido de tudo.
R7 — Como que você aprendeu a ler? Que livros que você lia quando era pequena?
Tamara Klink — Tive muitos estímulos diferentes. Quando era bem pequena, meu avô comprava gibis da Turma da Mônica e trazia para a gente [Tamara tem duas irmãs]. Isso criou o primeiro gosto. Depois, mais foi na casa dos meus pais, que sempre teve bibliotecas grandes. Os livros eram mais importantes do que sofá, do que cadeira. Minha mãe costumava nos dar de presente de aniversário. Eles viraram uma necessidade para mim quando meu pai e minha mãe pararam de nos contar histórias. Eu quis, então, buscá-las quando eles não estavam lá.
Durante a viagem, li Grande Sertão: Veredas no celular, que era o suporte que consumia menos bateria. Não tenho Kindle. Uma vergonha, né? Acho que sou meio conservadora
R7 — Teve algum emblemático?
Tamara Klink — Gostei muito da Bolsa Amarela, da Lygia Bojunga [clássico infantojuvenil de 1976 que trata da ânsia de uma menina por liberdade], e das Desventuras em Série [sequência de 13 obras do americano Daniel Handler, publicadas entre 1999 e 2006].
R7 — Nesses oito meses em que invernou na Groenlândia, você levou livros físicos ou baixou no Kindle?
Tamara Klink — Eu não tenho Kindle, mas trouxe livros físicos. E também teve os dados por outros navegadores, porque a gente costuma trocar livros no caminho. Eu trouxe alguns em francês [Tamara fez especialização em arquitetura naval em Nantes, no oeste da França]. Um deles é o Damien Autour du Monde [Damien ao Redor do Mundo, em português, do marroquino Gérard Janichon, sobre a aventura de dois amigos pelos oceanos ao longo de cinco anos] e outro é Knulp [sobre a vida de um andarilho], do [escritor alemão] Hermann Hesse [1877-1962]. É um livro que leio todos os anos. Quando percebi que os que eu trouxe não eram suficientes, baixei PDFs e li no celular. E também comecei a ler os que eu tinha salvos no computador, uns livros técnicos da época do mestrado. Uma vergonha, né? Acho que sou meio conservadora. Li Grande Sertão: Veredas [obra de 1956 sobre a dimensão universal do sertão nordestino; a edição da Cia. das Letras em 560 páginas], do Guimarães Rosa [1908-1967], no celular. Como o computador consumia muita bateria, tinha que ler no suporte que consumisse menos.
R7 — Quais mais?
Tamara Klink — Li a Odisseia, do Homero [928 a.C.- 898 a.C., aproximadamente], Segundo Sexo, da Simone de Beauvoir [1908-1986], e Na Natureza Selvagem [de 1996], do [americano] John Krakauer. Acho que fiz o caminho contrário do Christopher [protagonista do livro que viveu fora da civilização por dois anos], que era tentar estar o máximo possível preparada para tudo o que pudesse acontecer. Ter comida faz total diferença. Se eu tivesse que caçar minha própria comida ao longo de toda a viagem, teria tido menos momentos de fruição, de prazer, para ler. Li também o On the Road [considerado a obra-prima de Jack Kerouac sobre a viagem de uma dupla de amigos pela Rota 66, nos Estados Unidos]. Antes eu gostava, agora eu detesto.
Ter comida faz total diferença. Se eu tivesse que caçar minha própria comida ao longo de toda a viagem, teria tido menos momentos de fruição, de prazer, para ler
R7 — Teve isso de se preparar para matar um urso, né?
Tamara Klink — Vim com um fuzil, mas matar um urso seria o pior dos últimos casos. A ideia é ter ferramentas para se defender. Mas a gente está num país onde se caça urso, apesar de ser uma espécie em extinção, preservada em vários lugares. Na Groenlândia, mata-se animais. Para comer, inclusive, para usar como roupa. Tenho zero prazer com armas de fogo, então, para mim foi muito estranho. Mas eu me adaptei ao contexto local.
R7 — E isso que você falou sobre trocar livros com as pessoas dos outros barcos?
Tamara Klink — É uma tradição, faz parte da cultura náutica. Muitas pessoas entram no mundo dos barcos pelos livros, inclusive eu mesma. Tive nos livros mais ajuda e conselhos do que com meu pai. Construí minha vontade, meu desejo e meus planos lendo livros dos outros e me imaginando estar com eles. Eu imaginava: se um dia for dar uma volta ao mundo, como vai ser? Quando lia os livros de outros navegadores, sentia que aquele desejo era possível. Mas li os livros do meu pai também. Agora lembrei de outro que gostei muito, O Longo Inverno, da [aventureira australiana] Sally Poncet, sobre uma invernagem que fez com o marido na Antártida [em 1978]. Foi esse livro que me inspirou e que inspirou meu pai também [ele o cita em Cem Dias entre Céu e Mar].
Muitas pessoas entram no mundo dos barcos pelos livros, inclusive eu mesma. Tive nos livros mais ajuda e conselhos do que com meu pai
Muitas pessoas decidem largar tudo e navegar quando elas têm acesso aos relatos. Ainda é muito comum nos barcos a gente ler. Além disso, até um ano atrás, não havia internet a bordo, não existia Starlink, e havia muito tempo livre.
Então, a gente se dá de presente, troca. Em inglês, ou na língua que você souber. Se os velejadores já escreveram os próprios livros, então, são esses.
R7 — E como funciona a cultura dos groenlandeses?
Tamara Klink — As referências que eles me traziam eram dinamarquesas, porque são um povo colonizado por eles. Na cultura ancestral, os relatos eram muito transmitidos de maneira oral, não existe a tradição de escrever. Mas a presença da internet e das redes sociais mudou muito os vínculos e a maneira como os groenlandeses produzem e contam suas histórias. Há groenlandeses com canais no YouTube e milhares de seguidores. Mas é uma população pequena, são 56 mil pessoas. Como é um povo colonizado, é muito importante que eles comecem a escrever em primeira pessoa, em vez de serem descritos por outras pessoas.
R7 — Queria saber seus autores favoritos, nacionais e internacionais.
Tamara Klink — Acho que o livro de que eu mais gostei de ler de todos os tempos foi o Grande Sertão: Veredas [de 1956, do Guimarães Rosa]. Gostei muito também da Cabeça do Santo, da [cearense] Socorro Acioli, e da obra da Martha Batalha [escritora pernambucana].
R7 — E de literatura feminina, em geral?
Tamara Klink — Gosto muito da poesia da [americana] Eileen Myles e da [francesa] Cécile Coulon.
R7 — Você tem uma ligação muito forte com a sua avó. Pretende escrever mais algum livro para ela, além do Mil Milhas?
Tamara Klink — De certa forma, todos os meus livros são para ela. Porque penso nela quando estou escrevendo. Fiz vídeos para ela antes de partir [publicados nas redes sociais], tentando contar como seria, porque minha avó estava muito preocupada com a ideia de talvez a gente não voltar a se ver. Ela não entendia direito por que eu queria passar tanto tempo sozinha, se eu podia passar esse tempo com ela. Então, fiz os vídeos, para que ela entendesse que não era um abandono o que eu estava fazendo.
A melhor maneira de retribuir às pessoas que me incentivaram, me apoiaram e me acompanharam na viagem é compartilhar os relatos
R7 — E sobre esses oito meses que você passou? Pretende escrever um livro sobre isso?
Tamara Klink — Vai ser a minha maior missão quando eu voltar para o Brasil, para terra firme, em novembro. Vai dar muito trabalho porque tem muitas coisas que vivi sem colocar em palavras. Não sei ainda qual será o formato e estou um pouco apreensiva sobre esse retorno, porque tenho medo de esquecer das coisas e de talvez ficar presa a uma realidade que não é eterna, né?
R7 — Falando nisso, qual será sua próxima viagem?
Tamara Klink — Só vou partir para o próximo projeto quando terminar o livro, porque, quando a gente navega, não deixa rastro. A melhor maneira de retribuir às pessoas que me incentivaram, me apoiaram e me acompanharam na viagem é compartilhar os relatos, para que elas possam pelo menos imaginar como é viajar e sonhar com isso também. Vou, aos poucos, reencontrar as pessoas que deixei quando parti. Então, primeiro, vou para a França. Aí, vou para o Brasil de avião [em novembro]. Levaria muitos meses para atravessar o Atlântico de barco [risos].