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Filme cria sua própria versão de Elvis Presley e o transforma em super-herói da cultura pop

Cinebiografia do diretor Baz Luhrmann é espetáculo visual superficial; Austin Butler salva com interpretação perfeita

Odair Braz Jr|Do R7


Elvis (Austin Butler) em cena que mostra seu início de carreira, ainda na década de 50
Elvis (Austin Butler) em cena que mostra seu início de carreira, ainda na década de 50

Assim como Batman, Superman e Homem-Aranha, Elvis Presley se tornou um personagem sujeito a interpretações por parte de roteiristas e, no caso do cantor, diretores de cinema e TV. E nesta cinebiografia, que estreia nesta quinta-feira (14) no Brasil, o diretor Baz Luhrmann faz exatamente isso: mostra a SUA visão de quem foi Presley, sem se importar muito com fatos e cronologia.

Esta observação, digamos, mais particular do diretor não faz de Elvis um filme ruim. Com cenas belíssimas, imagens sofisticadas, atenção máxima aos detalhes cenográficos e de época e um Austin Butler inspiradíssimo, a produção é um bom entretenimento, é a mais bem cuidada feita sobre o cantor até hoje e o recoloca na cultura pop mundial como o ícone que sempre foi. Mas o filme também distancia o cantor da verdade histórica, fazendo dele quase que um super-herói da música.

Há pouco mais de dois meses, quando Priscilla Presley e Lisa Marie, ex-mulher e filha de Elvis, respectivamente, consideraram o filme como “perfeito”, já apareceu um sinal de alerta para este colunista. Porque um longa mostrando, de fato, a vida de Presley teria de incomodar, pelo menos um pouco, as duas em alguns aspectos. E a razão de não ter havido nenhum estranhamento por parte delas é que Luhrmann (diretor de Moulin Rouge, O Grande Gatsby etc) decidiu espetacularizar a história de Elvis, dando apenas pinceladas do que foi sua trajetória na música e nos palcos. O longa evita entrar em questões mais negativas e/ou delicadas, o que não o torna chapa-branca. Mas passa perto.

Luhrmann já havia falado em entrevistas recentes que o filme busca mostrar, através de Elvis, a história dos Estados Unidos nas décadas de 50 a 70, fugindo assim do que seria uma biografia no sentido clássico do termo. Só que o resultado é que acaba não conseguindo fazer direito nem uma coisa e nem outra.

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Butler como Elvis em 1968
Butler como Elvis em 1968

Veja: não é à toa que Elvis — nesses 45 anos após sua morte — não teve um filme biográfico caprichado no cinema. Não é que ele não merecesse — merecia demais — mas é muito difícil contar toda a sua história num longa de 2 horas de duração (2h39, neste caso). É bastante coisa para mostrar em pouco tempo e daí o motivo de que ninguém com um pingo de juízo tentou. Baz decidiu encarar o desafio, até porque seu estilo exagerado de filmar, supercolorido, intenso e cheio de brilho combina muito com Presley.

Pois bem, a tentativa de Luhrmann tem seus feitos: consegue divertir bem, é um entretenimento genuíno, com visual caprichado e maneiras criativas de mostrar tudo o que seu comandante julgou necessário estar na tela. E o principal: Austin Butler é um achado e um fenômeno.

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O ator é uns 70% do longa e praticamente carrega o piano nas costas com uma interpretação muito natural de Elvis. Ele consegue, o tempo todo, fugir de qualquer tipo de afetação. Butler, que não tem o rosto parecido com o do roqueiro, compensa isso de diversas outras formas. Recria com perfeição o jeito de falar de Presley, que foi mudando com o passar dos anos. Também refaz trejeitos, maneira de andar e de se portar, inclusive em cima do palco. Austin chega ao extremo de cantar, com sua própria voz, as músicas do início da carreira de Presley. Enfim, não será surpresa nenhuma se, no começo do ano que vem, Butler estiver concorrendo ao Oscar de melhor ator.

Enquanto isso, debaixo de muita maquiagem, Tom Hanks é apenas correto como o Coronel Tom Parker, empresário do cantor. O ator não consegue ser assombroso, às vezes parece caricato, mas dá bem conta do recado. A questão para Hanks é que sua participação acaba sendo ofuscada frente ao brilho extremo de Butler.

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Aliás, Parker é quem narra — com um sotaque inexistente na vida real — os acontecimentos da vida de Presley neste longa. Vemos o cantor através de sua visão. Luhrmann faz questão de mostrar o polêmico empresário como um tipo de vilão, um contraponto a Elvis, que é alçado à condição de vítima e super-herói.

Vilanizar o Coronel é uma decisão um tanto quanto exagerada do diretor, já que Parker não era esse malvadão todo, não. Certamente ele queria dinheiro, colocou Presley para trabalhar muito e tirou uma boa grana de seu artista. Mas também fez acordos importantes e garantiu a Elvis muitos ganhos financeiros. Fora que o cantor também não era só um bobinho manipulável como às vezes parece no cinema. Aliás, os dois gostavam muito um do outro, na verdade. Havia ali um carinho real apesar de umas brigas pontuais.

Outro feito do trabalho de Luhrmann é a atenção aos detalhes. O diretor recria com requintes de crueldade os trajes de Elvis, palcos, shows, a casa do cantor, lugares, roupas dos demais personagens, carros, avião etc e tal. Isso tudo realmente impressiona e mostra que o diretor fez a lição de casa neste quesito.

Tom Hanks (sob muita maquiagem) é o Coronel Parker, empresário de Elvis
Tom Hanks (sob muita maquiagem) é o Coronel Parker, empresário de Elvis

Há ainda uma edição bem-feita, com cenas divididas em três, quatro telas ao mesmo tempo com eventos diferentes em cada uma delas. Parte da infância de Elvis é mostrada através de uma história em quadrinhos, por exemplo. Tudo isso fica muito vivo na telona do cinema, e acontece numa evolução muitas vezes bem frenética, quase esquizofrênica. Mas que é bonito, é.

Luhrmann concebeu Elvis com uma intenção clara: resgatar a imagem do cantor, já desgastada pela passagem das décadas, o que o distanciou de pessoas de 35 anos para baixo. Nesse sentido, o filme funciona, ajuda a recolocar Presley no seu devido lugar e realça sua importância e capacidade artística. Mas as técnicas usadas pelo diretor para fazer o músico voltar a brilhar geram uns efeitos colaterais.

SEM LADO B

A maior das consequências pelas decisões tomadas pelo diretor é a falta de profundidade dos personagens. Como é uma cinebiografia, a expectativa é que fosse mostrado muito intensamente — ou um pouco mais, pelo menos — como Elvis era como pessoa, seu pensamento, sua personalidade, o lado B de sua vida. Mas o roteiro apenas tangencia estes aspectos e não consegue entrar em detalhes em praticamente nenhum momento. Tudo é muito raso. O espectador não consegue, por exemplo, entender a motivação de Presley como artista. Por que ele decidiu virar um cantor? Qual o tamanho de sua luta para virar um músico profissional? Como ele enxergava seu próprio talento? Cadê a Sun Records — primeira gravadora de Elvis — na história? O longa não nos dá estas respostas básicas que deveriam constar numa suposta biografia.

Aliás, os primeiros quarenta minutos de exibição são uma coisa totalmente alucinante de tão rápidos. É um atropelo só, que até pede uma segunda assistida para notar detalhes. Essa pressa na narração cobra um preço alto na edição final.

Por questões dramáticas, Luhrmann, que também é co-roteirista, toma umas liberdades poéticas e parte para umas invencionices meio bizarras. Esse recurso — de mudar um pouco os fatos — não é inédito em biografias, aconteceu muito em Bohemian Rhapsody, mas o diretor dá uma exagerada boa.

Primeiro que ele deixa de fora do corte final momentos muito importantes da vida de Elvis. Exemplo: não se vê o jovem cantor indo fazer suas gravações pagas na Sun Records, quando gravou dois compactos para uso próprio. Não temos também nada do romance tórrido que Presley teve com a atriz Ann-Margret, fase relevante de sua vida. O show no Havaí, um clássico presleiano, é citado muito por cima. E todo o restante é mostrado sempre numa velocidade gigantesca, muitas vezes sem maiores explicações. Não dá nem para saber que vemos na tela o dia em que Elvis e Priscilla assinaram os papéis do divórcio, porque foi simplesmente jogado na tela. Priscilla, diga-se, é retratada muito de leve no filme e não se tem a real dimensão do que foi o relacionamento dos dois.

E há as invenções propriamente ditas do diretor, coisas como uma suposta superamizade entre Elvis e B.B. King — que nunca aconteceu como exibido na tela — ou o cantor demitindo Parker em cima do palco durante um show em Las Vegas, que também nunca houve. Entre outros exageros criativos.

Mas tudo isso aí — correria, invencionices e falta de profundidade nos personagens — não significará nada para o público mais jovem que vai assistir ao filme, a geração TikTok, porque no final, é tudo bem bonito e divertido, cheio de brilho, espetacular. Durante 2h30, Elvis consegue sim entreter e relembrar uma fase da vida do cantor que muita gente não conhecia direito, até porque ele se foi há 45 anos. Nas mãos de Luhrmann, Presley surge gigantesco, um verdadeiro ícone pop, um símbolo sexual feito sob encomenda para agradar uma geração que o desconhece. É uma reapresentação do astro para quem nunca teve contato com sua obra, e isso é muita gente. Mesmo que tudo isso seja apenas uma parte da realidade, uma porção com muita maquiagem por cima. É nítido que o diretor ressaltou os melhores momentos da vida de Presley, deixando de lado ou citando ligeiramente o que deu errado.

Vendo o longa, fica claro que Luhrmann quis dar uma aliviada para o lado de Presley e mostrar sua trajetória quase como um conto-de-fadas onde tudo vai se encaixando de um jeito surpreendente até o final, que é trágico.

O diretor, em alguns trechos, faz ainda algumas defesas de Elvis. O cantor vem já há alguns anos sendo acusado de apropriação da cultura negra, por exemplo. Muitos críticos falam que ele teria roubado músicas de autores negros para fazer sucesso. O que é tudo uma grande bobagem, diga-se, e Baz enfrenta a questão.

Assim, do seu jeito meio fantasioso, o diretor mostra que isso — roubo da cultura — não existe e que Elvis foi criado dentro de comunidades negras no sul dos EUA. Então, ele conhecia de fato o blues e o gospel das igrejas protestantes frequentadas por afro-americanos. Muito cedo, o pequeno Presley teve contato com esta sonoridade, já que na cidade onde vivia — Tupelo — ele e sua família eram um dos poucos brancos que viviam entre os negros. Era algo orgânico no artista. Óbvio que Elvis também sofreu influências da música country — majoritariamente branca —, que misturou ao blues para desenvolver seu estilo musical, mas o diretor nem menciona.

Elvis e Priscilla (Olivia DeJonge) em cena do filme que acontece nos fim dos anos 60
Elvis e Priscilla (Olivia DeJonge) em cena do filme que acontece nos fim dos anos 60

Só que para ressaltar que Presley não foi um ladrão cultural — e não foi mesmo —, na tela vemos uma ligação intensa do cantor com a comunidade musical negra. Isso até existiu, mas não exatamente como é exibido no longa. Do jeito que ficou, parece que Elvis foi o salvador do blues no sul do país.

Ao mesmo tempo em que ressalta qualidades no cantor, Luhrmann também se distancia freneticamente de polêmicas. A questão do uso de medicamentos pesados, a falência do relacionamento com Priscilla, entre outras coisas, tudo ficou de fora. Ok, é uma opção do diretor, não dá mesmo para colocar tudo em 2h30, mas há em Elvis claramente um lado, que é o de querer mostrar o músico como um grande amigo da comunidade negra, um rebelde, um progressista e um sujeito que teria sido vitimizado por seu empresário.

Assista ao trailer do filme:

Olha só, tudo isso aí está de fato dentro da essência de Presley, ele foi tudo isso, mas outras coisas também. Elvis era um sujeito complexo, contraditório, solar, mas também sombrio em diversos aspectos. Quem assistir ao filme verá uma versão pop, muitas vezes alegre e divertida do cantor conhecido como o Rei do Rock, só que isso não foi tudo. Seus anos finais, por exemplo, são reduzidos ao máximo e temos uma impressão distorcida do que foi sua morte. Os anos de 1973 a 1977 foram importantíssimos na trajetória de Elvis e não nos é mostrado praticamente nada sobre eles. Do jeito que ficou no cinema, parece que ele se divorciou e morreu na sequência. Não foi assim, teve muito mais histórias depois disso, inclusive namoradas.

De novo: é mesmo impossível mostrar todos estes detalhes sobre Elvis num único filme. Há que se fazer escolhas difíceis sobre o que levar para a edição final, mas a omissão em larga escala de momentos decisivos e/ou negativos, não é aceitável numa biografia. Luhrmann preferiu privilegiar o espetáculo, o show e nos dar uma visão superficial do protagonista. É um caminho possível, mas não dá para deixar de dizer que o filme não tenha ficado manco em alguns sentidos. Ficou.

Luhrmann, com suas opções e escolhas, coloca na tela o seu próprio Elvis. Seu Elvis particular. É como fez Tim Burton com Batman nos anos 80, que mostrou o seu Homem-Morcego, que é diferente do herói nos filmes de Christopher Nolan, que trouxe uma outra versão. Nesse sentido, o longa é uma biografia possível de Presley, mas longe de ser a mais detalhada ou a definitiva. Em breve veremos o astro numa animação na Netflix em que ele é um agente secreto do governo americano. Daqui uns anos podemos muito bem ter uma nova biografia do roqueiro, que pode ser mais realista ou mais focada na vida pessoal. Sabe-se lá. Fato é que há espaço para um outro filme biográfico de Elvis, porque Luhrmann não fez o serviço completo.

Até porque, hoje, quatro décadas e meia após sua morte, tudo parece ser possível de ser feito com a trajetória mitológica de Presley, já que sua história não lhe pertence mais. O diretor apenas deu ao mundo a sua visão — pop, leve, espetacular e muito bonita — mas um tanto quanto incompleta e cheia de omissões.

No fim, Elvis é apenas entretenimento e espetacularização, coisas que o Luhrmann é especialista em fazer. Para o bem e para o mal.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do Grupo Record.

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