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‘Guerra dos Chips’: como China e EUA protagonizam a maior corrida tecnológica do século

Norte-americanos tentam limitar acesso de chineses a equipamentos eletrônicos avançados, o que deflagrou um embate que pode mudar os rumos do planeta

Tela Azul|Filipe SiqueiraOpens in new window

EUA e China investem bilhões para alcançar supremacia na fabricação de chips avançados Reprodução/UC San Diego

Em agosto de 2023, a Huawei lançou o Mate 60 Pro, o celular topo de linha da marca. Seria mais um lançamento comum em uma indústria já acostumada ao marketing pesado e inovação constante, mas o aparelho causou certa apreensão em autoridades norte-americanas. Tudo porque contava com avançados chips de 7 nanômetros, tecnologia que os Estados Unidos não previam que empresas chinesas sob embargo tivessem acesso.

A Bloomberg contratou a empresa de análise de tecnologia TechInsights para desmontar o Mate 60 Pro e confirmar a presença do chip, e ainda atestar que a velocidade de dados 5G do aparelho estava no mesmo nível dos iPhones mais modernos.

A análise revelou ainda que o processador principal do aparelho, chamado Kirin 9000s, era fabricado internamente na China, pela empresa parcialmente estatal SMIC (Semiconductor Manufacturing International Corp).

A confirmação da presença dos chips avançados no aparelho deu início a uma investigação internacional, que tentava descobrir como a empresa sediada em Xangai conseguiu equipar o aparelho com tecnologia tão avançada, que embargos impediam que certas empresas chinesas comprassem.


Nova corrida tecnológica

O episódio foi apenas mais um no que alguns analistas chamaram de “Guerra Fria 2.0” entre Estados Unidos e China, uma disputa pela supremacia em setores de tecnologia de ponta. Os chips são considerados justamente os componentes mais importantes dessa disputa, tratados como tecnologia militar por ambos os países.

“Enquanto os norte-americanos querem manter sua liderança tecnológica e limitar o acesso da China a tecnologias avançadas, precisamos lembrar que essa disputa traz rendimentos próximos ao inimaginável. A China investe pesado para se tornar autossuficiente e líder global no setor”, afirma Cristovão Wanderley, sócio-diretor da StratLab, empresa que estudo de tendências de tecnologia, em entrevista ao blog.


A Huawei e outras empresas chinesas foram colocadas em uma “lista negra” pelo Departamento de Comércio dos Estados Unidos, que impediu que até fabricantes de países aliados vendessem produtos com tecnologia de ponta — principalmente chips avançados — para elas.

As medidas restritivas começaram no primeiro governo de Donald Trump e foram ampliadas por Joe Biden. As mais amplas e recentes foram ratificadas em 7 de outubro, e tentaram atingir a induústria artificial e de semicondutores da China.


“O mundo pós-Guerra Fria chegou ao fim, e há uma competição intensa em andamento para moldar o que vem a seguir. E no centro dessa competição está a tecnologia. A tecnologia irá, de muitas maneiras, reequipar nossas economias. Ela irá evoluir nossos militares”, afirmou o secretário de Estado Antony Blinken, em um discurso dado na época, na Universidade de Stanford.

A principal preocupação, segundo os presidentes norte-americanos, é a “segurança nacional”. Segundo eles, o presidente Xi Jinping pretende tornar o exército da China o mais poderoso do mundo, e conta com tecnologia norte-americana para alcançar esse objetivo.

Segundo um relatório do Departamento de Defesa dos EUA (PDF), a China já desenvolve armas futuristas capazes de operar globalmente, além de buscar supremacia em “guerras informatizadas”, que envolvem “automação, big data, internet das coisas e inteligência artificial”.

Ainda de acordo com o relatório, o país já lidera alguns setores, “como reconhecimento facial e processamento de linguagem”, mas ainda depende de chips modernos fabricados por empresas ocidentais para implementar tais recursos.

No entanto, encarar um equipamento tão vital da tecnologia atual como um componente militar, de segurança nacional, pode atrasar o desenvolvimento de equipamentos do futuro, avalia Cristovão Wanderley.

“Isso tudo muda a maneira como olhamos para a tecnologia, criando barreiras comerciais e fragmentando o mercado global. Novamente, é algo que reforço, que a tecnologia é apenas uma ferramenta. Olhar para os microchips como petróleo, armas e outros ativos é algo que pode mais atrasar a evolução do que impulsioná-la”, afirma o especialista.

Imagine um campo de batalha onde enxames de drones guiados por software de inteligência artificial destroem centros de comando e quarteis-generais inimigos, bombas capazes de reconhecer o rosto de líderes militares de alta patente, robôs avançados que conseguem hackear e inutilizar equipamentos avançados, enquanto computadores gigantes traçam planos de ataque de larga escala contra nações inimigas. Esse é o tipo de guerra futurista que estrategistas militares norte-americanos e chineses planejam criar em breve. E para que ela funcione como deve, são necessários chips minúsculos e de alta capacidade. É justamente esse tipo de dispositivo que ambos os países desejam produzir — e impedir que o inimigo possuam os próprios.

Por que os chips avançados são tão fundamentais

Desde sua invenção — atribuído aos físicos Jack Kilby e Robert Noyce,, em 1958 —, os circuitos integrados, ou simplesmente “chips”, fora revolucionários para a eletrônica e a tecnologia em geral. Tornaram aparelhos muito menores, com mais capacidade de lidar com energia e, posteriormente, capazes de processar informação.

Basicamente todos os aparelhos eletrônicos possuem um. Estima-se que um carro moderno possua 1.500 deles. Celulares possuem sistemas complexos de chips integrados, que processam quantidades imensas de informação, como sinais de rede, imagens, gerenciamento de energia e gráficos. Esse tipo de integração e eficiência energética é a chave para entender por que chips e microprocessadores modernos são fundamentais para a tecnologia contemporânea.

Também são produtos de um esforço global de desenvolvimento, que tanto EUA e China buscam dominar.

Como escreveu Christian Aranha, doutor em Inteligência Computacional Aplicada pela PUC-Rio, em um artigo para a revista Technology Review:

Talvez, a fabricação de chips seja o auge da complexidade de colaboração do globalismo. Dezenas de etapas com centenas de fornecedores do mundo inteiro estão envolvidas para entregar cada produto tecnológico que está na sua casa. Ao mesmo tempo, qualquer tensão geopolítica pode abalar estas estruturas de cooperação econômica.

Tensões globais

No momento, três empresas são apontadas como as mais importantes na fabricação de chips. A Nvidia, que experimentou um salto assustador e hoje tem US$ 3,5 trilhões em valor de mercado, é uma delas. Seus chips gráficos são considerados os melhores para processar de forma eficiente as demandas das linguagens de inteligência artificial atuais. As outras duas são um pouco menos conhecidas.

A TSMC, de Taiwan, vale cerca de US$ 870 bilhões e é considerada a mais importante fabricante terceirizada de semicondutores do mundo. Foi de suas fábricas que saíram os primeiros chips de 7 e 5 nanômetros (só é preciso dizer que eles são extremamente pequenos), que equiparam os processoradores do iPhone 14.

Para muitos especialistas, não é loucura apontar que a TSMC pode ser uma alavanca que esquentará de forma dramática a disputa quase centenária entre China e Taiwan.

“Se o confronto entre China e EUA se intensificar, Taiwan pode se tornar o centro dessa disputa, aumentando os riscos de conflitos, que podem ir além da área econômica. Qualquer interrupção na produção da TSMC teria impactos devastadores nas cadeias globais de suprimentos, afetando desde smartphones até equipamentos médicos e sistemas de defesa”, explica Cristovão Wanderley, em entrevista ao blog.

Para conseguir fabricar chips tão poderosos e minúsculos, a empresa utilizou uma tecnologia chamada litografia Ultravioleta Extrema, que redefiniu a geometria dos chips e os tornou ainda menores. Até o momento, apenas uma empresa é capaz de criar máquinas que desenham e produzem chips com essa tecnologia: trata-se da holandesa ASML, considerada a maior empresa de tecnologia europeia, a terceira das empresas mais importantes do mercado de chips.

Acordos internacionais impedem que empresas chinesas tivessem acesso a todas essas tecnologias, o que freou um mercado gigantesco. Em 2022, estimava-se que a China importava cerca de US$ 350 bilhões em microprocessadores, o que apontava para uma dependência do país asiático de tecnologia estrangeira.

Mercado paralelo

As restrições do governo norte-americano resultaram em um efeito duplo. Primeiramente, gerou um mercado clandestino de venda de chips, com países intermediários, para que empresas chinesas tivessem acesso à tecnologica avançada. Em poucos meses, o preço dos chips no país dobrou, mas a demanda seguiu forte, como apontou a Reuters em 2023.

“A Reuters falou com 10 fornecedores em Hong Kong e na China continental que descreveram ser capazes de obter facilmente pequenas quantidades de A100s [chips avançados da Nvidia]. As informações deles destacaram tanto a demanda intensa na China pelos chips quanto a relativa facilidade com que as sanções de Washington podem ser contornadas para transações de pequenos lotes.”

Em 2015, o presidente chinês Xi Jinping lançou o programa “Made in China 2025”, cujo objetivo declarado era diminuir a dependência do país de tecnologias estrangeiras e ainda tornar empresas chinesas líderes de setores tecnológicos estratégicos.

Embora os microprocessadores da empresa ainda não sejam os mais avançados, a iniciativa colocou o país na liderança de setores como baterias, painéis solares e carros elétricos. Uma análise da Bloomberg apontou ainda que o país logo deve liderar setores como energia eólica, trens de alta velocidade, navios movidos a gás natural liquefeito.

“Se os EUA quiserem vencer a competição, pecisará correr mais rápido ou se esforçar mais para derrubar a China”, disseram os analistas econômicos da empresa.

Chineses também podem mudar a situação no mercado de semicondutores. Em setembro de 2024, a SMEE (fabricante de semicondutores de Xangai) registrou a patente de uma técnica de produção de máquinas de litografia ultravioleta extrema, o que pode colocar em xeque a supremacia absoluta da ASML. Mas especialistas duvidam que isso ocorra mesmo na próxima década, mas avaliam que a China está apenas cerca de cinco atrás atrás das principais empresas ocidentais de fabricação de chips.

Minerais raros

No início de dezembro, o Ministério do Comércio Chinês anunciou uma clara retaliação às medidas tomadas pelo governo norte-americano. Em um anúncio oficial, o órgão proibiu para os EUA a exportação de gálio, germânio, antimônio e outros minerais usados na indústria de alta tecnologia.

“Quero reiterar que a China se opõe firmemente à expansão excessiva do conceito de segurança nacional pelos EUA, ao abuso de medidas de controle de exportação e às sanções unilaterais ilegais e à jurisdição de longo alcance contra empresas chinesas”, disse Lin Jian, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, em entrevista coletiva dada na época.

Esses são alguns dos chamados “minerais raros”, estratégicos para a manufatura de componentes de alta tecnologia. A China é a maior exportadora global de vários desses materiais — embora outros países possuam reservas inexploradas.

“A solução a longo prazo está na diversificação de fornecedores, no desenvolvimento de alternativas tecnológicas e na reciclagem de metais raros”, afirma Cristovão Wanderley sobre as restrições de importação.

Apesar de ainda não ter alcançado a supremacia na fabricação de chips avançados, a China domina o mercado global dos chamados chips legados — maiores e menos poderosos, mas ainda assim fundamentais para diversos setores da indústria, como carros, veículos militares, eletrodomésticos e dispositivos médicos.

Tais chips são comprados de forma massiva e muitas vezes empresas não relatam a presença de chips chineses em seus produtos. Mesmo autoridades dos EUA ficaram “alarmadas” com a presença tão grande de componentes do país em produtos dos Estados Unidos: “dois terços dos produtos dos EUA que usam chips tinham chips chineses legados neles, e metade das empresas dos EUA não sabia a origem de seus chips, incluindo algumas na indústria de defesa” , disse Gina Raimondo, secretária do Comércio dos EUA, em relatório divulgado pela Reuters.

Todos esses movimentos indicam que a nova corrida armamentista entre os dois países está apenas começando, e ainda pode gerar uma série de tensões e consequências globais.

“Corridas como essa acabam gerando instabilidade diplomática e tensões entre os países que estão diretamente envolvidos, assim como aqueles que negociam com eles. Não podemos perder de vista algumas outras ações colaterais, muitas vezes ignoradas como, por exemplo, a estratégia de desdolarização das relações internacionais de importações e exportações”, conclui Cristovão Wanderley, também especializado em transformação digital.

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