Cornélio Pires e a primeira moda de viola gravada
Pesquisador descobre possível falha de gravadora, que pode alterar o que conhecemos sobre a primeira moda de viola gravada em 1929.
Cornélio foi, sem sombra de dúvidas, um visionário. Como matuto que abre picada onde só existe mato fechado, Cornélio deu o pontapé inicial para que a música caipira tivesse lugar ao Sol.
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O homem de tantas qualidades nasceu em 1884 na cidade de Tietê, interior do Estado de São Paulo. Rodeado pela rotina campeira passou a infância pescando no rio que leva o nome da cidade. Na adolescência bateu em retirada para a capital onde passou por redações de importantes jornais, como O “Comércio de São Paulo” e “O Estado de São Paulo”. Sim, ele foi jornalista... e dos bons! Cornélio Pires tinha afinidade com a escrita. Escrevia contos, poemas e estudava o folclore com demasiada devoção.
Livros? Escreveu 24. O mais famoso, “A Musa Caipira”, foi lançado em 1910 e foi um estouro! Nele estão as primeiras poesias escritas com dialeto caipira; marco na literatura brasileira.
O “muso caipira” tinha sangue empreendedor. Em São Paulo, reuniu duplas de violeiros e começou a fazer apresentações itinerantes. Música, anedotas, causos, imitações. Humor pra fazer rir, música sentida pra emocionar... tudo na dose certa.
Um viajado viajante! Cornélio não tinha paradeiro. No Brasil, de canto a canto, deu palestras sobre a cultura caipira e a vida do homem do campo. Trabalho que lhe rendeu título: Bandeirante do Folclore Paulista.
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Ninguém parava esse homem! Cornélio queria mais e virou roteirista e diretor de cinema. O primeiro filme foi “Brasil Pitoresco”, de 1924. E foi naquele mesmo ano que o Bandeirante Caipira atingiu recorde de vendas com o livro “As Estrambóticas Aventuras de Joaquim Bentinho”.
Cornélio Pires fincou os pés na história com uma decisão que teve que tomar em 1929. Não encontrando patrocinador para seu mais ousado projeto, tirou os cobres da guaiaca e bancou uma série de discos caipiras que até hoje são venerados por colecionadores no Brasil inteiro: a famosa série de discos de selo vermelho da gravadora Columbia.
Foram ao todo 53 discos bancados do próprio bolso. Achar um exemplo em bom estado, nos dias de hoje, é o que amantes da música chamam de “garimpar”.
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“Falando em Cornélio Pires, é muito curioso observar que as primeiras gravações que ele levou aos estúdios, dessa forma particular, patrocinada, são gravações de causos, de anedotas, de situações curiosas. Isso, de certo modo, obedecia à demanda da época, porque existiam vários humoristas na época que gravavam, mas havia uma espécie de ditado de norma, de regra, daqueles humoristas que estavam fixados nas grandes capitais, Rio e São Paulo. Como era o caso do Pinto Filho, como era o caso do Alfredo Albuquerque, com o seu sotaque português, e outros contemporâneos.”
Miguel Bragioni - pesquisador e colecionador
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São vários os ritmos caipiras: cururu, cateretê, toada etc. Um deles é a moda de viola, como o nome já diz, é um estilo em que não há outro instrumento acompanhando a cantoria, apenas a viola. E foi em 1929 que a primeira moda de viola foi gravada por uma dupla convidada por Cornélio Pires. A dupla era Mariano e Caçula, respectivamente pai e tio de um grande artista que todos conhecemos, o Caçulinha.
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Naquela época os discos eram feitos de cera ou materiais plásticos que quebravam com facilidade: os discos “78 rpm” (78 rotações por minuto). Como giravam mais rápido, só era possível gravar uma música de cada lado - são considerados como sendo o pai do disco de vinil. Assim eram feitos todos os discos do Cornélio na Columbia.
A primeira moda de viola gravada pelo pai e pelo tio do Caçulinha foi “Jorginho do Sertão” (disco Columbia 20.006, matriz 380259), no entanto, recentemente, uma nova informação trouxe uma reviravolta para tudo aquilo que aprendemos sobre a primeira moda de viola gravada.
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“Ficou fixado na memória de todos nós que o Jorginho do Sertão era a primeira moda de viola lançada pelo Cornélio Pires. Isso ficou na cabeça de todos, foi repetido em vários trabalhos acadêmicos, em publicações oficiais, renomadas e assim sucessivamente.”
Miguel Bragioni - pesquisador e colecionador
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Miguel Bragioni, colecionador paulista com mais de 200 mil discos catalogados levantou uma questão que me deixou intrigado. Ele observou, através do número da matriz dos discos da série de Cornélio, que “Jorginho do Sertão” pode não ter sido a primeira moda de viola gravada, mas sim a “Moda do Peão”, da mesma série.
Acontece que, provavelmente por um erro da gravadora, a “Moda do Peão” foi gravada antes, mas lançada depois de “Jorginho do Sertão”. E como foi possível chegar a esta conclusão? O colecionador explica:
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“Ocorre que há alguns meses eu estava ouvindo as gravações do Cornélio Pires e notei o quê? Que ele procurava esclarecer sobre o gênero musical que ia ser apresentado ali na gravação. Antes da dupla cantar, ele fazia uma introdução explicativa. E aí, o que chamou a atenção? Que o Jorginho do Sertão, que está no disco Columbia de número 20.006, ele não fez uma apresentação. No entanto, no disco seguinte, que é o disco Columbia de número 20.007, que contém a Moda do Peão, Cornélio Pires faz exatamente essa explicação que não constou no Jorginho do Sertão. Por que ele faria uma explicação na segunda moda de viola gravada e não na primeira?”
Miguel Bragioni - pesquisador e colecionador
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É porque, provavelmente, ela realmente não foi a primeira. Miguel se aprofundou e observou o disco mais detalhadamente. E a reposta estava no próprio disco, mais precisamente, no número de matriz!
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Observe que o número do disco com Jorginho do Sertão realmente é anterior ao disco com a Moda do Peão, mas a matriz não é. Concluímos, então, que a primeira moda de viola gravada no país foi a Moda do Peão.
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“E a matriz, como o próprio nome diz, é a mãe. Ela é anterior à produção da massa. Ela é a primeira. Ela é a primeira produção. O que houve? Pode ser que a Columbia tenha cometido essa gafe e lançado a Moda do Peão subsequente ao Jorginho do Sertão.”
Miguel Bragioni - pesquisador e colecionador
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Alguém comeu bola e lançou o disco fora de ordem. Curioso, não?
E assim é Cornélio! Tomo a liberdade de usar o verbo no presente mesmo depois de sua morte, em 1958, porque o caminho que ele trilhou no início do século passado permanece aberto até os dias de hoje.
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Claro que a música caipira sofreu mudanças com o êxodo rural, quando o homem do campo migrou para a cidade grande, mas podemos afirmar que a música caipira é imortal. Prova disso é este blog que acaba de ser estreado em pleno 2025. Ainda falamos de Cornélio, ainda falamos da música caipira.
TERMOS PARA ENTENDIMENTO:
-bater em retirada: ir para outro lugar, abandonar um determinado lugar.
-fincar os pés: consolidar-se em algo, ser referência.
-tirar cobres da guaiaca: cobre é o dinheiro e guaiaca é um cinto de couro com bolsos acessórios para guardar o dinheiro.
-Columbia: Columbia Phonography Company foi uma produtora de discos do início do século passado. Sediada em Nova York, a firma era representada no Brasil pelo Sr. José Hoffay. A representação do Grupo Columbia Internacional ficou a cargo da Byington e Cia.
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