Documentário faz pergunta surpreendente: é possível amar um macaco como um filho?
Produção debate a relação dos humanos com seus animais de estimação e alguns estigmas sociais pouco comentados
RPet|Amanda Hess, do The New York Times
“Amar um macaco é totalmente diferente da maneira como você ama seu filho. Se for seu filho natural, é natural porque você realmente deu à luz aquela criança. Mas, quando você adota um macaco, o vínculo é muito mais profundo”, diz Tonia Haddix, corretora de animais exóticos – comerciante que obtém animais de criadores e depois os revende –, logo no início de “Chimp Crazy”, a série documental que investiga o mundo das pessoas que possuem chimpanzés.
Veja também
“Chimp Crazy” chega neste verão setentrional em que há uma obsessão cultural e política sobre o lugar dos animais em nossa vida familiar. Quando J.D. Vance se tornou candidato republicano à vice-presidência, resgataram seu comentário feito em 2021 sobre as “senhoras sem filhos donas de gatos”, posicionando-as como adversárias da família tradicional. A revista “New York” publicou uma edição especial questionando a ética da posse de animais de estimação, apresentando um ensaio polêmico sobre uma mãe anônima que negligenciou seu gato quando seu bebê humano nasceu. No âmago dessas histórias, ouvem-se os ecos de uma discussão que está em toda a internet. Nela, os animais de estimação são colocados em oposição às crianças humanas; aqueles e estes são forçados a travar uma batalha psíquica pelo reconhecimento dos adultos.
Essas dinâmicas parecem superaquecidas desde 2020, ano em que a vida familiar americana – aquela instituição insular que se espera que atenda a todas as necessidades de cuidados humanos – se tornou hermética. A pandemia do coronavírus exagerou uma tendência ainda maior em direção ao isolamento doméstico: os donos de animais de estimação passando mais tempo com os bichinhos, os pais passando mais tempo com os filhos, e todos passando menos tempo uns com os outros – exceto talvez no tempo gasto on-line, em que nossas cenas domésticas colidem em um teatro de queixas e estresse.
Quando um gato, um cachorro ou até mesmo um chimpanzé participa da história de um grupo humano, isso desequilibra o núcleo familiar, revelando suas hipocrisias e seus danos. Em “Chimp Crazy”, Haddix surge como a representante de todas as contradições do ideal doméstico, que inclui os cuidados domiciliares. Ela ama seus “bebês” chimpanzés com tanta obsessão que os prende (e a si mesma) em uma paisagem miserável da vida familiar.
Mulher de 50 e poucos anos, Haddix se descreve como a “Dolly Parton dos chimpanzés”, acreditando que Deus a escolheu para ser cuidadora. Era enfermeira registrada antes de se tornar voluntária residente em um local de criação de chimpanzés no Missouri. Descreve um chimpanzé macho, chamado Tonka, como se fosse seu filho. Também tem dois filhos humanos, que ela ama menos, segundo disse na série de TV.
Ao se autodenominar mãe de um animal selvagem aprisionado, ela afirma uma forma idealizada de maternidade, a qual descreve como altruísta, interminável e pura. “Chimp Crazy” é a história de como pode ser destrutiva essa ideia de amor, tanto para a mulher como para o macaco.
Conforme evolui, a série vai iluminando uma rede subterrânea de criadores e corretores de chimpanzés. Brittany Peet, advogada da ONG People for the Ethical Treatment of Animals (Pessoas unidas pelo tratamento ético de animais), descreve isso como uma “cultura de quase todas as mulheres que criam chimpanzés e macacos como se fossem bebês”. São figuras maternas completamente solitárias que mitificam os macacos como crianças eternas que nunca respondem, nunca amadurecem e nunca vão embora.
Animais engaiolados
É óbvio que os chimpanzés não foram feitos para viver entre pessoas; é apenas a gaiola que os mantém lá. Repetidamente, “Chimp Crazy” mostra como o “amor” humano pelos chimpanzés leva à negligência, ao abuso e à violência. A série aborda a loucura de perder um animal selvagem na família, mas também é sobre o vazio no centro da família.
Enquanto assistia a “Chimp Crazy”, li a edição da revista “New York” sobre a posse de animais de estimação. A capa mostra uma pessoa vestida com uma fantasia felina completa, segurando as barras de uma janela como se estivesse olhando de dentro de uma cela de prisão. As páginas com a matéria são cheias de expressões populares como “pai de estimação”, “bebê peludo” e “criança iniciante”, sugerindo que, quando falamos sobre nossos animais de estimação, estamos realmente falando sobre nós mesmos. Ou, pelo menos, sobre nossos filhos.
Há um ensaio sobre esse tema que teve grande repercussão on-line. “Por que parei de amar meu gato quando tive um bebê?” conta a história anônima de uma mãe recente, e como seu amado gato, Lucky, se tornou um inimigo no período pós-parto. Enquanto Lucky passa a ser tratado como um incômodo, o peso da frustração e o desespero da autora com o pesado fardo de ter de cuidar de seu primeiro filho ficam evidentes. No ensaio, a mãe expressa isso como um problema de afeição diminuída. Seus críticos on-line a repreenderam repetindo o mesmo refrão: “O amor não tem fim.”
Tonia Haddix ama seus chimpanzés, enquanto a escritora anônima da revista detesta seu gato. Em cada caso, os animais sofrem, e o amor apenas confunde a questão. O amor infinito é uma ideia bonita, mas cuidar de fato dá trabalho, e a capacidade humana de trabalhar tem limites.
A dona de Lucky teme que o tratamento que dá ao gato a torne uma “psicopata”. Negligencia o animal, mas espera que seu amor retorne magicamente. Ao ler sua história, perguntei-me se a própria expectativa de que seu coração produza o amor sem limites, necessário para alimentar atos de cuidado sobre-humanos, é exatamente o que a impede de fazer o que é correto para seu gato: encontrar para o Lucky um cuidador que possa satisfazer suas necessidades, sem precisar associar a isso um toque sentimental.
Guerra cultural
Confinar os cuidados à família tradicional – o que muitas vezes significa descarregar todos os cuidados nos ombros de uma só mulher – não faz justiça nem às crianças nem aos pais, muito menos aos animais de estimação. Quando J.D. Vance disse a Tucker Carlson, há alguns anos, que a América é dirigida por “senhoras sem filhos donas de gatos”, desencadeou uma guerra cultural contra qualquer mulher que resista a esse modelo isolado e punitivo de prestação de cuidados. Como Vance tentou esclarecer mais tarde, “não tenho nada contra os gatos”. Este, com sua reputação de independência indiferente, significa apenas que a mulher é livre para seguir uma vida fora de casa.
Vance não é o único a sugerir que as mulheres permaneçam em casa para criar os filhos como uma obsessão única. A cada mês no X (ex-Twiter), tenho provas de que existe uma contracorrente cultural sugerindo que as crianças, e por extensão os pais, não são bem-vindas ou adequadas para circular na vida pública. Estou me lembrando de uma briga na internet, que estourou em novembro passado, quando uma autointitulada “mãe de animal de estimação” postou sobre uma criança que correu até seu cachorro. A mulher disse que, depois de bloquear a menina com o corpo, a educou (“Talvez não devamos correr para cães que não conhecemos”), e que em seguida educou a mãe da menina, repreendendo-a: “Se sua filha não atende uma chamada de voz, talvez devesse estar na coleira.”
À medida que uma criança constrói seu caminho pelo mundo, aprende por tentativa e erro. Idealmente, encontra vizinhos e pessoas que ficam felizes em poder ajudá-la. Essa interação, seja real, seja dramatizada em seu objetivo de receber atenção máxima, revela uma condescendência em relação à criança, uma relutância em reconhecê-la como uma pessoa e uma ânsia em punir os pais por não controlar o filho.
Os cães frequentemente aparecem em tais discussões sobre a adequação de crianças em espaços públicos, geralmente para sugerir que estas não devem sair de casa até que os pais as tenham “treinado” para sentar, ficar e calar. Em abril, uma foto postada no X mostrava um quadro-negro do lado de fora de um pub que dizia: “Amigo de cães, e sem crianças”. A frase inspirou semanas de comentários irritados.
Quando as crianças são apresentadas como cães inferiores, e estes são mitificados como crianças superiores – mais aptos para a vida social humana do que toda uma classe de pessoas –, não tenho a certeza de quem ganha, mas não creio que sejam as crianças nem os animais de estimação. Muitas vezes, aquelas e estes circulam nessas histórias como objetos fóbicos, locais de projeção onde os humanos adultos despejam as próprias necessidades não satisfeitas. Quando Haddix se dispõe a cuidar de um bando de chimpanzés jovens, nega a dor deles e a própria dor para alimentar fantasias de felicidade doméstica.
A teórica feminista Sophie Lewis, em um provocativo panfleto em 2022, “Abolir a Família: Um Manifesto para o Cuidado e a Libertação”, observa que pode ser mais fácil reconhecer sistemas que abusam de animais do que ver as estruturas que não atendem as pessoas: “Não hesitamos em dizer que os animais não humanos estão melhor fora dos zoológicos, mesmo que habitats alternativos para eles estejam se tornando mais escassos. Da mesma forma, a família está fazendo um péssimo trabalho de cuidado, e todos nós merecemos algo melhor.”
Um dos momentos mais tristes em “Chimp Crazy” é quando o filho adulto de Haddix, Justin, reflete sobre crescer numa família em que um macaco é mais importante do que ele. Ele menciona sua mãe faltando aos eventos da escola para cuidar das necessidades urgentes de seus animais de estimação. “É aí que entra a grande atração por esses primatas. São como crianças que nunca crescem, por isso vão precisar constantemente dos cuidados dela.”
Justin tenta se conformar com a necessidade que sua mãe tem de se sentir absolutamente necessária. “Quando está com um primata, dá para perceber que ela está feliz. E não posso atrapalhar esse momento.”
c. 2024 The New York Times Company