Exageros podem marcar a vida pós-pandemia, dizem especialistas
Sociólogo americano prevê era de libertinagem sexual, gastança desenfreada e eventos esportivos lotados após o controle do vírus
Viva a Vida|Do R7
Desde que o primeiro caso de covid-19 foi diagnosticado, uma série de limitações modificou a forma com que as relações sociais se caracterizam. O distanciamento social, principal medida de controle da pandemia, praticamente restringiu as interações sociais às telas dos computadores e smartphones.
Isso ocorreu até mesmo em ocasiões de luto e despedida, como mostraram as imagens dos enterros que circularam em redes sociais e na televisão. Mas como será a vida depois que o novo coronavírus não for mais uma ameaça letal? Após um mínimo controle da doença, será possível voltar a se aglomerar?
Na tentativa de projetar este cenário, o sociólogo e epidemiologista americano Nicholas Christakis publicou o livro A Flecha de Apolo: o Impacto Profundo e Duradouro do Coronavírus na Maneira como Vivemos (ainda não traduzido para o português), em que analisa, com base em pandemias passadas, que o mundo pós-pandêmico será de “libertinagem sexual e grandes gastos”e que “as pessoas buscarão interação incansavelmente”, como disse em entrevista ao diário britânico The Guardian.
O doutor em psicologia pela USP (Universidade de São Paulo) Leonardo Goldberg admite que as previsões de Christakis podem se concretizar e explica que as pessoas são sujeitos atravessados pela tecnologia vigente e seus recursos.
“Podemos desenhar um modelo baseado em acontecimentos anteriores para prever algumas características atuais. Porém no campo humano, sempre devemos estar abertos aos acasos, novidades e diferenças, tudo aquilo que foge aos modelos”, adverte.
O psicólogo explica ser comum que, quando o ser humano vive um período de exceção e de limitações impostas por uma iminência de morte, exista uma tendência posterior de compensação com muita intensidade. “A sociedade como um todo também incorpora hábitos, inclusive gestuais, portanto, provavelmente nos manteremos distantes espacialmente. No pós-pandemia, podemos ter essas compensações sexuais e econômicas, mas, em geral, devemos incorporar apenas algumas práticas de cuidado necessárias nesse ‘tempo fora do tempo’”, explica.
Já Tulio Custódio, doutorando em sociologia pela USP e curador de conhecimento, explica que o vírus não cria nada, apenas evidencia estruturas que já estavam colocadas. Para ele, tanto a ideia do consumo desenfreado quanto a da libertinagem sexual já são duas realidades no atual contexto social.
“São respostas que já estão dadas na perspectiva de sociedade que temos desde 1960, quando aconteceu o movimento da contracultura com a liberdade sexual do corpo. E a lógica do consumo vem desde o fim da Primeira Guerra Mundial, lá em 1920, com o consumo como forma de realização dos prazeres”, argumenta.
Na perspectiva do sociólogo, a pandemia tende a intensificar alguns padrões de neoliberalização da sociedade, como a falta de respaldo por parte do Estado. “Como a discussão da disseminação privada da vacina, a crise de Manaus em que as pessoas correram atrás para resolver a questão do oxigênio, tudo isso é reflexo da intensificação de uma sociedade que está por conta própria, que é um dos elementos que caracterizam essa sociedade neoliberal”, diz.
Em contrapartida, Custódio chama a atenção para os afetos que podem influenciar os comportamentos em um cenário de pós-pandemia. “Os afetos do medo e da esperança, principalmente os do medo, estão muito relacionados à nossa sociedade de produção e de consumo, do trabalho exacerbado. Nos últimos 50 anos, a gente percebe que isso ampliou as lógicas de insegurança, do sentimento do ‘eu não sei o que vai ser o amanhã’”, afirma.
Para ele, o medo conectado à insegurança tende a ficar em evidência e muitos comportamentos estarão conectados a isso. “E o que fazer para lutar contra o medo? A pessoa vai buscar pontes para construir formas de segurança, como a adesão a discursos fáceis que dão sentidos a uma realidade que ela gostaria de enxergar. A disseminação de notícias falsas tem muito a ver com isso, com a realidade que nós queremos enxergar a partir da nossa noção de verdade, que faça sentido e nos conforte”.
“A esperança tem conexão direta com o medo, que são afetos que estão vinculados com o sentimento de algo que se perdeu e se quer recuperar. A esperança vem transmutada com a questão da vacina, então esses comportamentos estarão vinculados com essa dimensão com aquilo que a gente pode construir e as promessas do que a gente pode alcançar, como a melhora da economia e a retomada de uma vida normal”, encerra.