Empréstimo consignado para funcionários CLT: oportunidade ou armadilha?
Primeiro dia da medida é marcado por fila digital e mais de 13 milhões de solicitações de crédito

Antes de analisarmos o mais novo fenômeno que está chacoalhando o país, que fez muita gente passar a madrugada atualizando o aplicativo de solicitação de crédito e que, em questão de poucas horas, levou mais de 13 milhões de pessoas a uma corrida por dinheiro emprestado como se fosse um pr6emio de loteria, quero convidar você a refletir sobre alguns assuntos que, no meu entendimento, estão intimamente associados.
De alguns anos para cá, o brasileiro parece não viver sem três coisas: aplicativo de mensagens, redes sociais e empréstimos. Em julho de 2023, o WhatsApp ficou fora do ar por apenas 40 minutos, o que gerou revolta e rendeu milhares de reclamações de Norte a Sul do país.
Em 2024, os brasileiros passaram, em média, 9 horas e 13 minutos por dia nas redes sociais, segundo o Relatório Digital 2024, da We Are Social e Meltwater. Por tratar-se de um período superior à carga horária máxima de trabalho que a CLT permite – 8 horas diárias – chega a ser inacreditável.
Ainda no ano passado, de acordo com dados divulgados pelo Banco Central, o saldo das operações de crédito do sistema financeiro totalizou R$ 6,4 trilhões, um aumento de quase 11% em relação ao ano anterior.
Um tripé perigoso
O trio imediatismo, migalhas de dopamina ao longo do dia todo e dinheiro “rápido e fácil” tem deixado um rastro de prejuízos em vários aspectos: boa parte das pessoas vive ansiosa, dorme mal e tem, entre outras coisas, baixa produtividade no trabalho e falta de concentração. Para completar o quadro, oito de cada dez famílias brasileiras estão endividadas.
Apesar de parecerem assuntos desconexos, esse estilo de vida baseado no excesso de estímulos, numa sobrecarga sensorial que gera dependência e no imediatismo, tem um impacto direto e negativo nas atividades cerebrais, segundo uma infinidade de estudos. Cada vez mais pessoas apresentam dificuldades em se concentrar em tarefas que exijam qualquer esforço mental, ainda que mínimo, como a leitura e a interpretação de texto. Hoje em dia, qualquer composição que passe de dez linhas já é considerada “textão” e, geralmente, entre os que se dispõem a ler, apenas uma pequena fração consegue, de fato, entender e memorizar o que leu.
Dito isto e considerando que o planejamento financeiro exige atenção e raciocínio lógico, a associação desses fatores é altamente justificável. Porém, apesar de estarmos diante de dados alarmantes, nada disso parece preocupar o governo e nem mesmo a própria população que, por sua vez, está muito distraída para perceber o que acontece bem debaixo de seus narizes. Os esforços que os governos sempre fizeram para ocultar o que não lhes convinha que fosse levado a público e o empenho em preparar discursos elaborados não são mais necessários, pois qualquer narrativa que sinalize minimamente benefícios ou vantagens já é o suficiente para despertar o efeito manada na população.
Mas e o consignado, é oportunidade ou armadilha?
O modelo de empréstimo consignado para funcionários da iniciativa privada em regime CLT pode ser as duas coisas, a depender das razões pelas quais se recorre a ele. Do ponto de vista das garantias, os bancos e as instituições financeiras estão mais do que cobertas. Aliás, estão felizes da vida por poderem acessar gratuitamente o eSocial, uma plataforma do governo que contém dados importantíssimos dos mais de 47 milhões de trabalhadores CLT do país.
Do ponto de vista do capital político, o governo atual está mais do que bem servido, pois colocou em vigor uma medida populista que, a curto prazo agrada e que, quando o castelo de cartas começar a desabar e as pessoas se virem num emaranhado de juros e com a renda menor do que nunca, a próxima eleição presidencial já terá passado. Já do ponto de vista do trabalhador, trata-se de uma corda que pode tanto enforcá-lo, quanto arrebentar para o seu lado, deixando-o numa situação financeira ainda pior. E, apenas em umas poucas situações (como quitar uma dívida de rotativo de cartão ou limite da conta que possuem juros absurdamente altos), pode ser a corda que talvez tire alguns do fundo do poço.
Na verdade, o que o governo propõe é emprestar dinheiro ao trabalhador utilizando o seu próprio dinheiro como garantia, tanto seu FGTS, quanto seu salário e abocanhar 100% da eventual multa rescisória sobre o Fundo de Garantia. Caso o trabalhador seja demitido sem justa causa, surge uma aparente benevolência: pausar a cobrança do empréstimo.
Porém, assim que o devedor voltar a trabalhar com carteira assinada, voltará a ter o desconto do consignado, mas desta vez, acrescido de mais juros que incidirão durante todo o período em que o pagamento foi suspenso. Uma arapuca que fará com que a pessoa se veja em um emaranhado de dívidas, já que não poderá contar com a integralidade da sua rescisão contratual, nem de seu FGTS e, provavelmente, terá acumulado outras dívidas pela falta do emprego. Esse é um grande desestímulo ao trabalho já que o novo salário já estará comprometido por muito tempo.
O que parece ter juros “baixinhos”, na verdade tem apenas taxas mais baixas do que o mercado normalmente oferece. Mas disso, o brasileiro médio não tem a menor ideia, para ele, um, dois ou quatro por cento ao mês parecem números bem pequenos. O foco das pessoas está apenas na “parcelinha” de R$ 200 que “cabe no bolso” até de quem recebe salário-mínimo e que não vai deixar ninguém “mais pobre”. A questão é que não somente as deixará mais pobres, como também diminuirá ainda mais o poder de compra.
A matemática não mente
Nesta simulação, feita pela Calculadora do Cidadão do Banco Central, um empréstimo de R$ 10 mil a uma taxa de juros de 1,8% ao mês e prazo de pagamento de 96 meses, teria “parcelinhas” de R$ 219,62 mensais. O total a ser pago seria de R$ 21.083,52, sendo R$ 11.083,52 só de juros (mais do que o valor emprestado).
Se esse trabalhador recebe um salário-mínimo por mês (R$ 1.518) – e já tem dificuldades para se sustentar – passará a receber, pelos próximos oito anos, um salário ainda menor: R$ 1.298,38. E, como se fosse pouco, verá seu poder de compra diminuir com o aumento da inflação que, em fevereiro, foi a mais alta dos últimos 22 anos.
Todos pagam o preço da ignorância
Provavelmente, quem mais precisava ler esta análise jamais o fará. Seja por falta de interesse, por dificuldade de interpretação de texto ou até mesmo por suas paixões, a exemplo dos inúmeros comentários maldosos que tenho recebido nas redes sociais por tentar alertar as pessoas dos perigos que correm.
O problema é que, seja qual for motivo que levou mais de 13 milhões de pessoas, em apenas um dia, a correrem atrás de crédito como quem se joga de um penhasco, todos terão de pagar – literalmente – por essa atitude durante anos. E, não só eles, mas a economia do país como um todo.