Exercícios de pequeno poder: quando os pobres oprimem a si mesmos
É comum dizer que ricos exploram pobres, porém, no dia a dia dos menos favorecidos a opressão parte deles mesmos

Depois de esperar o dia todo que a ambulância do SAMU socorra o marido que caiu de cama há dias, a idosa – a quem chamaremos de dona Maria – decide ir em busca de alguém disposto a levá-los ao pronto-socorro. Apesar de ser um domingo, todos dizem que estão ocupados, com exceção do filho de uma vizinha, que promete “fazer o favor” desde que ela encha o tanque do carro. Dona Maria oferece os únicos 50 reais que possui. O rapaz diz que “não dá nem pro cheiro” e bate o portão.
A idosa reúne forças e praticamente carrega o marido até o ponto de ônibus. Lá não há mais bancos, os “noias” os arrancaram. Sem conseguir mantê-lo em pé, dona Maria senta o marido no meio fio, usando o poste como encosto. Ela dá sinal, mas os ônibus passam direto. Dona Maria está acostumada, afinal, idosos demoram para subir no ônibus e nem todo mundo tem paciência. Finalmente um motorista para, mas ao ver dona Maria levantando o marido do chão, grita que não é chofer de bêbado, fecha as portas e arranca.
Um taxista encosta e diz que a corrida é cem reais. Dona Maria oferece sua única nota de 50 e ele aceita: “Vou quebrar o seu galho, mas a senhora está me dando prejuízo”. Durante o trajeto – que leva menos de dez minutos – ele repete diversas vezes que está perdendo dinheiro e que é isso que dá querer ajudar os outros. Ela baixa a cabeça e agradece a ajuda, enquanto percebe que o marido parece pior do que quando estava em casa.
A recepcionista do SUS os atende de má vontade e fica indignada quando dona Maria pede uma cadeira de rodas para o marido. “Aqui não é assim não, dona. Pra exigir mil coisas tem que ir no particular!”
No dia seguinte, depois de muitas horas de espera, dona Maria descobre que o marido precisará tomar um medicamento de alto custo. Ela recebe uma série de papéis e é encaminhada à farmácia do hospital: “Lá eles vão lhe dar o remédio”, dizem.
O rapaz atrás do guichê mal levanta os olhos, mas diz, em um tom desnecessariamente alto: “Documento do paciente, receita, laudo e exame!” Dona Maria entrega os papéis, mas ele grita que falta um carimbo. “Não adianta trazer tudo pela metade, dona. Volta lá no PS!”
Ela deixa o marido ali mesmo para ir mais rápido. Os remédios diminuíram a dor, mas agora ele está fraco devido a tantas horas sem comer. No PS, a enfermeira diz que não falta “coisa nenhuma” e a manda voltar à farmácia.
O atendente fica furioso: “Além de não fazer o que eu mandei a senhora ainda quer furar a fila?” Dona Maria não acha justo pegar a fila toda novamente, mas prefere obedecer, pois sabe que o rapaz tem poder para dificultar as coisas ainda mais e até lhe negar o medicamento.
Depois de uma longa espera, o atendente a chama e entrega uma sacola. Ela percebe um sorriso estranho no rosto do rapaz, mas agradece com um “Deus lhe pague”, enquanto pensa que, no fim, a humilhação toda valeu a pena.
Dona Maria está exausta e o marido não dá um passo sem se escorar nela. A idosa decide voltar de táxi, mas avisa que, para pagar a corrida, vai pedir dinheiro emprestado a uma vizinha e isso pode demorar um pouco. O taxista aceita, mas quando vê que a corrida não chega a vinte reais, prefere não cobrar. Ela lembra que a ida custou mais do que o dobro, mas agradece efusivamente, afinal, não é sempre que encontra alguém “honesto e de bom coração”.
Dona Maria divide o pão de ontem em pequenos pedaços, os coloca em uma tigela com um pouco de café com leite e dá ao marido: “coma tudo pra poder tomar o remédio”. Enquanto ele devora a sopa de pão, ela percebe que o nome na caixa do remédio é totalmente diferente do que diz a receita. O rapaz entregou o medicamento errado, provavelmente de propósito por ter sido “desobedecido”.
Ela desaba numa cadeira e só consegue pensar que alguém muito doente pode estar precisando daquele remédio caro que, para ela, não vale absolutamente nada.