Apartheid no Carnaval? Entenda a polêmica do Afródromo em Salvador
Em um cenário cada vez mais dominado por trios de axé e celebridades, iniciativa de dar destaque a blocos afro gerou polêmica na Bahia
Carnaval 2014|Miguel Arcanjo Prado, editor de Cultura do R7
"Da Sé ao Campo Grande, somos Filhos de Gandhy, de Dodô e Osmar. Por isso, chame, chame, chame, chame gente". Quando compôs Chame Gente, Moraes Moreira parecia profético sobre o que se tornaria o Carnaval de Salvador. A turba de turistas ouviu o chamado e invadiu a cidade. E o mundo dos negócios também. Só que, com os novos atores da festa, seus foliões tradicionais foram para escanteio. Até mesmo o próprio Moreira, que abandonou a festa neste ano por divergências com sua organização.
Mas, como manter a convivência da tradição da folia baiana com o grande negócio que o maior Carnaval de rua do mundo se tornou? Se é difícil para uma figura conhecida como Moraes Moreira, é pior ainda para as mais de 140 entidades de Carnaval de matriz africana de Salvador. Apesar de terem originado tudo, hoje lutam para manter sua presença na folia. Como diz Alberto Pitta, presidente da Liga dos Blocos Afro, "o bolo que criamos cresceu, mas nós ganhamos a menor fatia".
R$ 1,3 bilhão
O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), em entrevista exclusiva ao R7 [leia entrevista completa ao fim da reportagem], reconhece que o bolo é mesmo gigante e conta que o Carnaval de Salvador vai "movimentar neste ano R$ 1,3 bilhão e gerar cerca de 210 mil empregos temporários". Todo o recurso foi captado da iniciativa privada: "R$ 45 milhões em cota de patrocínio", dos quais, segundo o prefeito, "R$ 10 milhões serão de lucro a ser investido na cidade".
Além de comemorar os números, ACM Neto também reconhece a importância das entidades de matriz africana. E lembra que este Carnaval homenageia os 40 anos de ressurgimento dos blocos afro e afoxés na festa.
— O Carnaval de Salvador só tem essa beleza e energia por causa do som que ecoa, primeiro, dos bairros berços dos blocos afro.
Se a beleza, som e energia sobram, ainda faltam recursos e holofotes para esta gente. O grande foco da festa continua sendo os blocos de trios com as estrelas do axé que atraem multidões. Neste ano, segundo o prefeito, a cidade receberá 600 mil turistas até a próxima Quarta-Feira de Cinzas. Gente que procura a festa como símbolo de diversão. Para ACM Neto, não deve haver guerra entre blocos afro e axé.
— Acredito que a axé music surgiu como mais uma manifestação cultural, criada para estar ao lado dos blocos afro. Não devemos pensar em disputa entre as duas manifestações porque ambas tiveram seu lugar na história do Carnaval.
"Apartheid" no Carnaval?
Homenageados da vez, os blocos afro terão mais de destaque em 2014. Aqueles que desfilavam esquecidos no circuito Batatinha, no centro histórico, agora desfilam em horário nobre no Campo Grande – que, junto com a Barra, formam os dois grandes circuitos da festa, com farta cobertura da mídia e camarotes.
Tudo porque a prefeitura abarcou e adaptou a ideia do Afródromo, pensada inicialmente por Carlinhos Brown e algumas lideranças afro. O Afródromo, inicialmente, consistia em um novo circuito a ser montado na Cidade Baixa, que seria ocupado apenas por agremiações de matriz africana. Contudo, membros da própria comunidade acusaram a iniciativa de tentar provocar um "apartheid" dentro do Carnaval baiano, dividindo a festa dos negros da dos brancos.
João Jorge Rodrigues, do Bloco Afro Olodum, considerou que o Afródromo como novo circuito "criaria gueto", e Gilsoney de Oliveira, presidente da Unafres (União de Afoxés, Afros, Reggaes e Samba do Estado da Bahia) falou que a iniciativa criava "um apartheid Carnavalesco". Diante do impasse, a prefeitura de Salvador procurou agradar a gregos e troianos e levou a ideia do Afródromo como um horário especial de desfile dentro do circuito oficial.
"Uma pobreza só"
O presidente da Liga dos Blocos Afro, Alberto Pitta, foi um dos defensores ao lado de Carlinhos Brown do Afródromo em novo circuito. Ele explica ao R7 que a iniciativa "não queria provocar separatismo", mas dar espaço aos blocos afros de aparecerem sem ter de disputar espaço com celebridades.
—A ideia do Afródromo gerou uma reação da sociedade conservadora e racista da Bahia. O apartheid já é o próprio Carnaval, que releva os blocos afros a um circuito [Batatinha] que não tem visibilidade. Queríamos o novo circuito perto do porto, para atrair os turistas que chegam nos cruzeiros, em sua maioria estrangeiros que têm interesse na cultura afro.
Pitta lembra que, ao contrário dos trios e camarotes milionários, que atraem robustas verbas da iniciativa privada, os blocos afros vivem com verba mirrada e desfilam "com pessoas descalças, vestidas com tecidos de má qualidade, uma pobreza só".
Apesar de não ter conseguido o novo circuito, Pitta espera que o Afródromo incorporado pela prefeitura possa ajudar os blocos a se reerguerem.
— O Carnaval de Salvador foi vendido e ninguém quer abrir mão de sua parte, porque os lucros são grandes. Só que ninguém lembra que tudo isso só existe por causa dos blocos. Arrecadaram R$ 45 milhões com nossa ideia do Afródromo, só não podem se esquecer que somos os atores principais da festa. Vamos ver como será. Ironicamente, no Carnaval 2014, o Cortejo Afro comandado por Pitta tem como tema A Relação de Confiança no Outro.
"Papagaios de pirata com pulseira VIP"
Paulo Miguez, professor do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA (Universidade Federal da Bahia), afirma que blocos de origens africanas "devem ser apoiados com base em políticas culturais, sob pena de correrem o risco de desaparecer". O especialista lembra que é preciso dar atenção ao Carnaval afro, que sofre de "invisibilidade", já que "a mídia está mais interessada no seu 'star system', nas celebridades, nas subcelebridades e no bando de papagaios de pirata que matam e morrem por uma pulseirinha VIP".
Para o estudioso da folia baiana, a ideia inicial do Afródromo como um circuito novo era "uma segregação espacial estranha ao espírito que inspirou o surgimento dos blocos afro 40 anos atrás: a recusa do gueto e a afirmação política do seu direito à participação no Carnaval". O professor da UFBA prefere como Afródromo atual: incorporado ao circuito existente.
— Os blocos afro não apenas transformaram a festa carnavalesca como produziram um impacto de grande envergadura na cultura e no cotidiano de Salvador.
Preto e branco não entram
Ao contrário da maioria dos blocos que se abriram aos turistas, o Ilê Aiyê, o pioneiro e mais cultuado bloco afro baiano, mantém a proibição de brancos participarem de seu desfile. A entidade, composta apenas por afrodescendentes, afirma fazer isso como forma de "preservação de sua identidade étnico-cultural".
Fato é que blocos que se abriram demasiadamente a turistas, como o Afoxé Filhos de Gandhy, assistem atualmente a recorrentes atitudes de desrespeito à tradição por parte dos "novos foliões".
Analisando o assunto, o pesquisador Paulo Miguez lembra a música Tradição, de Gilberto Gil, que se refere a um tempo "que preto não entrava no Bahiano [Clube Bahiano de Tênis, da aristocracia baiana] nem pela porta da cozinha". Situação que, segundo ele, "ainda perdura dentro e fora do Carnaval".
O professor da UFBA lembra que na década de 1980 alguns blocos de Carnaval da elite baiana exigiam fotografia e até comprovante de residência dos foliões, como forma de barrar negros e pobres.
— A discriminação chegou a sugerir um bloco de classe média alta autonomear-se como "o metro quadrado mais bonito da avenida". Isso numa cidade em que "beleza" tem cor e que, sabemos, não é a cor preta.
Mesmo com tanta agressividade na história do Carnaval, Miguez não acredita que responder com segregação seja o caminho.
— Não concordo que a proibição da participação de foliões brancos nos desfiles de um bloco afro, prática que só acontece no Ilê Aiyê, seja uma política acertada de enfrentamento do racismo que ainda marca presença na festa e na cidade.
Leia entrevista na íntegra: "Blocos afro merecem reconhecimento", diz prefeito ACM Neto
O prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), conversou com exclusividade com o R7 sobre as polêmicas do Carnaval de Salvador, incluindo a ideia do Afródromo abarcado pela prefeitura, e a disputa dos blocos afro por maior atenção do governo e da mídia. Leia a entrevista:
Miguel Arcanjo Prado/R7 – Como o senhor avalia a existência neste ano do Afródromo; Ele é benéfico para a festa?
Antônio Carlos Magalhaes Neto, prefeito de Salvador – O Afródromo é a verdadeira manifestação do que queremos para o Carnaval de Salvador: respeito à sua tradição. Não há dúvida de que muito da energia que o Carnaval de rua possui vem exatamente dos blocos afro que, ao longo da história dessa festa, foram recebendo horários com menor visibilidade. No Carnaval passado tivemos uma pílula do que será colocado na rua esse ano. Agora, os blocos afro terão desfile em horário nobre, a partir das 18h30, no circuito do Campo Grande, sendo, portanto, assistidos por grande parte dos foliões que estará nas ruas, incluindo maior cobertura da mídia. Passam a receber a atenção que merecem. Não foi à toa que os escolhemos como os grandes homenageados da festa desse ano, exatamente pelos 40 anos de desfile no Carnaval de Salvador. A energia, a história e a beleza dos blocos afro são fundamentais para a maior festa de rua do mundo.
O senhor acha que o surgimento da axé music como força principal do Carnaval de Salvador na mídia deixou os blocos afros em situação desfavorável? Como resolver isso?
Acredito que a axé music surgiu como mais uma manifestação cultural, criada para estar ao lado dos blocos afro. Não devemos pensar em disputa entre as duas manifestações porque ambas tiveram seu lugar na história do Carnaval. Os blocos de axé e afro merecem o mesmo destaque pela contribuição que deram à nossa cultura e história musical. Eles, muitas vezes, transformaram a realidade social nos locais onde foram criados e também por isso merecem nosso reconhecimento.
Houve resistência à criação do Afródromo inicialmente, com blocos dizendo que ele faria um "apartheid" no Carnaval baiano. Como o senhor avalia este temor e responde a esta questão?
Estamos, na verdade, colocando os desfiles dos blocos afro em horário nobre. Essa foi uma decisão tomada exatamente para privilegiar essas manifestações culturais. Serão três dias de desfiles, com toda a estrutura necessária para que esses blocos tenham a merecida visibilidade no próprio circuito do Campo Grande e fora dele, através da cobertura da mídia. Os desfiles de blocos afro, intimamente ligados ao conceito do Carnaval, passam a viver um novo momento que privilegia sua tradição e sua beleza.
Por que o Carnaval de Salvador resolveu homenagear aos blocos afros neste ano?
Porque entendemos que o Carnaval de Salvador começa nos seus bairros, onde foram criados nossos blocos afro. É a alegria que começa na Liberdade e em Itapuã, por exemplo, com o Ilê e o Malê, que contagia toda a cidade. O Carnaval de Salvador só tem essa beleza e essa energia por causa do som que ecoa, primeiro, dos bairros berços dos blocos afro. Além disso, temos de homenagear os 40 anos de desfiles desses blocos no Carnaval, uma história que precisa ser lembrada e reverenciada todos os anos, mas que neste terá um gostinho especial.
Ainda há bloco afro que não deixa brancos desfilarem. Como o senhor vê esta atitude de resistência cultural?
Acredito que cada bloco tem que procurar sua própria formatação. O Carnaval precisa ser, acima de tudo, uma festa de respeito às identidades, às igualdades. O que a prefeitura faz e tem de fazer sempre é oferecer as condições necessárias para que os desfiles ocorram com organização e com os serviços públicos fundamentais para qualquer festa de grande porte.
Qual é a expectativa de número de turistas nacionais e internacionais neste Carnaval?
Cerca de 600 mil turistas estarão na cidade durante o Carnaval, número que já é comemorado pela nossa rede hoteleira.
Qual é o valor do investimento que a prefeitura fez no Carnaval de Salvador?
Não injetaremos recursos públicos na festa por entendermos que a cidade precisa de investimentos pesados em outras áreas: saúde e educação, por exemplo, e infraestrutura, porque passamos muitos anos sem receber investimentos significativos nessa área, o que deixou nossa cidade num estado total de abandono. Não seria justo retirar dinheiro de setores fundamentais da nossa cidade para aplicar no Carnaval. Graças a uma gestão corajosa sobre o evento, conseguimos organizar uma festa completamente financiada por patrocínio.
O Carnaval de Salvador vai movimentar qual quantia neste ano?
O Carnaval de Salvador vai movimentar cerca de R$ 1,3 bilhão com a geração de negócios e turismo, além de criar cerca de 210 mil empregos temporários. E, pela primeira vez, a festa vai se pagar. Isso quer dizer que a Prefeitura não terá de desembolsar um centavo sequer para a organização da festa. Ou seja, sobra dinheiro para que possamos investir em outras áreas consideradas prioritárias, como saúde e educação, por exemplo. Através do esforço da Secretaria de Desenvolvimento, Turismo e Cultura (Sedes), liderada pelo secretário Guilherme Bellintani, conseguimos captar R$ 45 milhões em cota de patrocínio, sendo R$ 10 milhões de lucro. Antes disso, a Prefeitura injetava na festa cerca de R$ 19 milhões. Além de não precisar colocar a mão no bolso para pagar o Carnaval, ainda teremos R$ 10 milhões para investir na cidade, sem contar no patrocínio que resultou em melhorias para a prestação dos serviços de educação, que nos permitiu levar internet em banda larga para cerca de cem escolas. E ainda teremos reforço no nosso calendário de eventos: ao fecharmos o patrocínio, condicionamos o acordo a outros eventos, que já receberão verba dessas empresas para serem viabilizados. Essa é uma nova forma de gestão dos grandes eventos, que servirá como modelo para outras cidades.
Por que o Carnaval de Salvador é o "melhor do Brasil"?
Não é porque sou soteropolitano, mas tenho certeza que somos o povo mais alegre desse País. E é justamente pelo nosso povo que conseguimos realizar a melhor e maior festa de rua do mundo.