Será que o brasileiro Adriano Pedrosa vai conseguir salvar a Bienal de Veneza?
Diretor artístico do Masp, Pedrosa será o primeiro curador latino-americano nos 130 anos de história do evento
Famosos e TV|Do R7
Só mesmo workaholics e otimistas inveterados devem organizar uma Bienal de Veneza, como descobriu o curador brasileiro Adriano Pedrosa durante os inúmeros voos e reuniões tarde da noite que lotaram sua agenda nos últimos dois anos. “Isso provavelmente levaria cinco anos e uma equipe de pesquisadores intensamente dedicados”, disse Pedrosa em uma videoentrevista, se não tivesse passado mais de uma década estudando as possibilidades, mais recentemente como o influente diretor artístico do Museu de Arte de São Paulo (Masp).
Na terça-feira, quando começam as prévias para a imprensa da 60ª exposição internacional, são os outros que vão julgar se o curador de 58 anos captou o espírito da arte contemporânea com sua mostra dupla, “Foreigners Everywhere” (Estrangeiros por toda parte), nos amplos espaços do Giardini e do Arsenale.
O título é uma provocação, reforçada pela pauta anti-imigração da Itália, da Hungria e de outros países nos últimos anos. Pedrosa, contudo, fala na celebração do estrangeiro e das ondas históricas de migração em todo o planeta, apresentando um catálogo de sinônimos – “imigrante, emigrado, expatriado” – e ao mesmo tempo expandindo o conceito. “Pego essa imagem do estrangeiro e a desdobro em queer, forasteiro, indígena.”
Esses temas – abordados por 331 artistas, a maioria dos quais não é conhecida nem mesmo pelos conhecedores de arte mais experientes – estão divididos em duas seções principais, uma com foco na arte contemporânea e outra dedicada a trabalhos feitos no século XX. A maioria veio do Sul Global, sem nenhuma representação em galerias importantes nem presença no circuito de museus. Muitos visitantes verão pela primeira vez as abstrações fragmentadas de Zubeida Agha (1922-1997), do Paquistão, os retratos expressivos de Hatem El Mekki (1918-2003), da Tunísia, e as fantasias coloridas de Emiliano di Cavalcanti (1897-1976), do Brasil, entre outros.
Desde o início, os críticos perceberam que “Foreigners Everywhere” serviria como um ponto de virada sombrio, e até melancólico, segundo alguns: é a primeira Bienal de Veneza nos últimos anos que apresenta mais artistas mortos do que vivos.
Mas o elemento surpresa tem sido o cartão de visita de Pedrosa há muito tempo. No Masp, suas emblemáticas exposições intituladas “Histórias” reúnem obras de arte de várias épocas e lugares, derrubando as narrativas dominantes da cultura ocidental.
Sua exposição “Histórias Afro-Atlânticas”, de 2018, exemplificou essa abordagem ao discutir a diáspora africana e tópicos relacionados, como a escravidão, por meio de cerca de 500 obras que, de acordo com Pedrosa, abrangem 450 anos de história. Holland Cotter, crítico do “The New York Times”, escreveu que o curador “transformou em um laboratório cultural uma instituição que se anuncia como tendo a coleção mais significativa de obras-primas europeias antigas do Hemisfério Sul”.
Outros curadores seguiram o exemplo de Pedrosa, incluindo Max Hollein, diretor do Museu Metropolitano de Arte de Nova York, o Met, que iniciou uma série de exposições interculturais em 2020, usando diversas áreas da coleção. “Nos últimos cinco ou seis anos, Adriano abordou basicamente as principais questões que os museus do mundo inteiro estavam levantando a respeito de suas coleções. Ele desenvolveu um plano principal”, comentou Hollein.
Mas a Bienal de Veneza vai colocar à prova a força da fórmula de curadoria de Pedrosa, assim como sua capacidade de captar a atenção do público global que também estará presente nos cerca de 90 pavilhões nacionais e nas dezenas de eventos paralelos independentes espalhados pela cidade inundada.
“Reclamar das bienais é um dos passatempos favoritos do mundo da arte. Fala-se da falta ou do excesso de artistas jovens, de artistas locais... Não dá para agradar a todo mundo o tempo todo. O importante é o tipo de argumento geral que está sendo apresentado. A maior preocupação, que todos estão perdendo de vista, é que a Veneza de Pedrosa pode ser nossa última declaração intelectual aventureira por muitos anos”, alertou a historiadora de arte Claire Bishop, de Nova York, referindo-se à inclinação direitista da política italiana, que abalou o setor cultural depois da eleição de Giorgia Meloni como primeira-ministra em 2022. Ao nomear o jornalista Pietrangelo Buttafuoco, notoriamente defensor da extrema-direita, como novo presidente da Bienal de Veneza, Meloni preocupou alguns acadêmicos, que temem que ele conteste os impulsos liberais do mundo artístico.
Em uma série de entrevistas em vídeo, Pedrosa afirmou que o governo não interferiu em seu programa: “Tive total liberdade e autonomia para desenvolver o projeto. Fiz uma reunião com um indivíduo do Ministério da Cultura, falei sobre o projeto, e foi tudo bem. Nada de mais.”
No entanto, o curador admitiu que a política interna e os conflitos internacionais afetaram a exposição. Sua celebração dos estrangeiros surge depois de uma repressão do governo italiano, em meio a planos de enviar alguns migrantes resgatados no Mediterrâneo por navios italianos para centros de detenção na Albânia. Por meio de um abaixo-assinado, milhares de artistas e profissionais da cultura exigiram que a Bienal de Veneza proibisse Israel de abrir seu pavilhão nacional em razão do conflito em curso na Faixa de Gaza. Mas o ministro da Cultura da Itália, Gennaro Sangiuliano, rejeitou o pedido, declarando que Israel “não só tem o direito de expressar sua arte, mas também tem o dever de dar testemunho ao seu povo, precisamente em um momento como este, em que foi cruelmente atingido por terroristas impiedosos”.
Lidar com boicotes ou protestos na Bienal de Veneza cabe à liderança da organização, observou Pedrosa; ele é responsável apenas pela exposição principal, que apresenta três artistas palestinos e inclui algumas obras de arte que remetem à guerra entre Israel e o Hamas.
Primeiro curador latino-americano nos 130 anos de história da Bienal de Veneza, Pedrosa está acostumado a navegar pela política do mundo da arte. “Ele é um dos mais importantes curadores do Brasil”, disse Jacqueline Martins, galerista de São Paulo que destacou que Pedrosa ajudou a internacionalizar a reputação dos artistas do país.
Pamela J. Joyner, colecionadora de arte e curadora do Museu de Arte Moderna de Nova York, contou que suas recentes aquisições de obras de artistas negros brasileiros como Antonio Bandeira (1922-67) e Laís Amaral (nascida em 1993) foram inspiradas pelo trabalho de curadoria feito por Pedrosa e seus colegas de museu. “Algumas exposições coletivas acabam pendendo para a mediocridade sem revelar nada novo, mas as dele não são assim. Ele nos oferece muito com que trabalhar.”
E os jornalistas brasileiros que acompanharam sua ascensão ao estrelato internacional notaram como Pedrosa parecia transitar sem esforço entre funções comerciais e institucionais no início da carreira. Essa reputação foi forjada em uma feira de arte local, a SP-Arte, na qual dirigiu programas artísticos de 2011 a 2014 sob o comando da fundadora da feira, Fernanda Feitosa. Esse era um dos muitos projetos de Pedrosa na época em que era curador independente, trabalho que incluía a organização de seções para a feira de arte Frieze e exposições em museus do mundo inteiro. Sua atuação como diretor artístico do Masp começou em 2014, sob o comando de Heitor Martins, presidente do museu – e marido de Feitosa.
“Sua visão como curador cresceu simultaneamente à ascensão do mercado nas últimas três décadas. Seu foco não tem sido promover uma arte palatável para o mercado, mas expandir a compreensão da arte brasileira mediante projetos que trazem para o primeiro plano vozes e facetas da história menos conhecidas”, explicou Gabriella Angeleti, escritora de cultura brasileira que vive entre o Rio de Janeiro e o Brooklyn, em Nova York.
Mas encontrar o tom certo para a Bienal de Veneza é algo extremamente difícil – tarefa que exige escala global, visão independente e um toque diplomático.
Com cabelo grisalho, Pedrosa é bonito e tem uma simpatia contagiante; o curador se destaca nos níveis estratosféricos de networking necessários em uma exposição que atrai líderes mundiais e colecionadores importantes. E já está preparando uma defesa contra algumas críticas iniciais que sua lista de artistas gerou quando foi publicada este ano.
Ao saber que a edição de 2022 da Bienal incluía 95 artistas mortos, representando 44 por cento dos participantes, a ARTnews declarou que a estatística era “impressionante”. Este ano, a proporção de artistas mortos na exposição é de 55 por cento.
Por isso, Pedrosa se deparou com algumas perguntas inesperadas: o que significa produzir uma exposição de arte contemporânea quando mais da metade dos artistas não está viva?
“Acho lamentável. Vivemos em uma época sem esperança, com muito pessimismo. Não se tem fé no futuro, nem uma visão dele, quando a cultura poderia ao menos expressar algo sobre o que é estar vivo nos dias atuais. Voltar ao passado é impedir que o presente aconteça”, declarou Dean Kissick, crítico cultural de Nova York, observando que quase 50 artistas da atual Bienal nasceram no século XIX.
Pedrosa discordou. “Muitos dos artistas estão mortos, mas sua arte está muito viva”, afirmou, lembrando que muitos curadores estão descobrindo artistas mais diversificados do século XX que foram ignorados em sua época. E acrescentou que os artistas contemporâneos terão a maior presença física na exposição porque serão representados por várias obras ou por uma única obra em grande escala. “Dá para ver que a arte contemporânea foi descolonizada até certo ponto, mas isso não aconteceu com a maioria das exposições durante o século XX.”
Bishop, a historiadora de arte, apontou para um elemento histórico consistente em todas as Bienais de Veneza: “Parece que a maioria dos artistas mortos serão figuras de meados do século e do Sul Global, portanto dificilmente serão conhecidos. Francamente, vai ser mais gratificante do que ver os mais recentes graduados do MFA que foram comprados e exaustivamente promovidos pelas galerias comerciais de Nova York e Berlim!”
As críticas também podem ser apenas parte da tradição da Bienal, de acordo com Hollein, diretor do Met, que participa da exposição há décadas: “Nos dias de abertura, sempre há discussões acaloradas dizendo que a Bienal foi um fracasso. Mas depois é visível o impacto e a abertura de horizontes.”
c. 2024 The New York Times Company